Data da publicação: 07 de outubro de 2021

Autores: Francisco Braga, Raquel Torres e Simone Ferreira (OPGH/Fiocruz)

 

Uma década após a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), debates sobre os seus potenciais e limitações voltaram a ganhar destaque com a possibilidade de contratualização do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que está em pauta neste momento.

Em setembro, o Observatório de Política e Gestão Hospitalar da Fiocruz (OPGH/Fiocruz) publicou reportagem (leia neste link) sobre essa discussão, com as expectativas de representantes do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ).

Hoje, ouvimos o superintendente do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), Nilton Pereira Júnior. Sua análise sobre a EBSERH tem dupla relevância. Em primeiro lugar, porque ele é um importante pesquisador do tema. Em sua tese de doutorado, se deteve sobre as políticas e a gestão dos hospitais universitários federais entre 2003 e 2018 – tendo acompanhado de perto as principais mudanças nos hospitais que fizeram a contratualização com a EBSERH nesse período (veja aqui). Em segundo lugar, porque é gestor do último hospital universitário a aderir à empresa, o que aconteceu em 2018. Pereira Júnior tem, portanto, um vasto conjunto de elementos para avaliar os impactos da EBSERH como pesquisador e como gestor: conhece a trajetória de dezenas de hospitais que aderiram à empresa e pode contar, a partir de sua própria experiência à frente do HU-UFU, quais têm sido as vantagens e os desafios após a contratualização dessa unidade.

Nilton Pereira Júnior é médico sanitarista formado pela Faculdade de Medicina da UFU, mestre e doutor em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É também autor do livro "Apoio Institucional no SUS: dilemas da integração interfederativa e da cogestão".


Fale-nos um pouco sobre a história e o papel do HC-UFU na assistência médico-hospitalar em Uberlândia e na região do Triângulo Mineiro.

O Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia foi inaugurado em 1970 para ser um hospital-escola do curso de Medicina, que havia acabado de ser criado. Hoje, trata-se de um hospital de referência para 27 municípios e mais de 1,2 milhão de habitantes do Norte do Triângulo Mineiro, oferecendo média e alta complexidade em todas as linhas de cuidado – neurologia, cardiologia, traumatologia, oncologia. Em Minas Gerais é o maior hospital da rede federal de ensino e, no Brasil, está entre os maiores.

Estamos acompanhando agora a retomada das discussões sobre a adesão na UFRJ. O HC-UFU também demorou para aderir à EBSERH, o que só aconteceu em 2018. Por que houve essa demora?

Acredito que pelo mesmo movimento [observado na UFRJ]. Desde 2014 a UFU vinha discutindo a adesão com muita resistência do DCE dos estudantes, do sindicato dos técnicos e do sindicato dos docentes, que tinham uma opinião fortemente contrária naquele momento. Ainda existe essa dificuldade. Houve momentos em que a reitoria também não foi favorável, por medo de perder o controle do hospital e também por ceder às pressões do movimento sindical. Nesse contexto, até 2017 a proposta não avançou, sendo rejeitada pelo Conselho Superior da Universidade em uma ou duas oportunidades.      

Há um entendimento, na minha avaliação equivocado, de que a EBSERH é uma empresa privada, que vem para privatizar o hospital. Já ficou comprovado que não é isso. É uma empresa que vai gerenciar o hospital. As universidades contam com fundações de apoio privadas para administrar de forma mais rápida, menos burocrática. No nosso caso, a EBSERH tira a gestão de uma dessas fundações privadas [a Fundação de Assistência, Estudo e Pesquisa de Uberlândia (FAEPU)]. 

Em que condições o hospital se encontrava quando assinou o contrato com a EBSERH? Quais eram as principais dificuldades ou desafios que a unidade enfrentava naquele momento?

Com o agravamento da crise econômica, financeira, política e mudanças abruptas de governo nesse período [entre 2013 e 2017], houve uma piora muito grande no nosso cenário hospitalar. Fechamos muitos leitos por falta de financiamento. Além disso, nossa fundação de apoio estava impedida de contratar. A Universidade fazia aportes financeiros para salvar o hospital, mas, com seu orçamento reduzido, tal saída rapidamente se esgotou. Em vários meses a Fundação não tinha recursos para pagar salários – havia greves, atrasos de salários e mais greves. 

Em 2018, começou a haver algumas pressões no sentido da adesão. O Ministério Público atuou fortemente recomendando que a Universidade aderisse. A prefeitura também pressionou. Por quê? Porque a única saída que o governo federal deu para os hospitais e para as universidades era a adesão à EBSERH. O reitor ia buscar recursos em Brasília e a fala era unânime, tanto do MEC [Ministério da Educação] como do Ministério da Saúde:“só vamos oferecer dinheiro a mais se vocês aderirem à EBSERH”. 

Esse contexto fez com que a reitoria buscasse construir apoio político interno. Mesmo com votos contrários (foi o caso do movimento sindical), a maioria dos diretores da Universidade entendeu que não havia outra saída, senão a adesão. 

Como o orçamento do hospital evoluiu após o contrato com a EBSERH?

Como nós somos um hospital universitário, boa parte do custeio do hospital –  de 50% a 70% – era composto por verbas MEC, por meio do pagamento do pessoal RJU concursado da Universidade, lotado no hospital. A unidade sempre contou com recursos do MEC, mas nos últimos anos eles se tornaram cada vez mais insuficientes para manter o funcionamento. Por isso usamos a Fundação de apoio para contratar pessoal e comprar material, insumos e medicamentos com os recursos provenientes do SUS. 

A EBSERH não impacta nos recursos SUS. O SUS continua com os mesmos problemas de subfinanciamento e de defasagem no valor dos procedimentos. A tabela usada para remunerar os prestadores hospitalares está desatualizada há mais de dez anos, e isso não mudou no novo cenário.

Mas hoje os recursos SUS são geridos cada vez menos por meio da Fundação. Antes, cerca de 70% desses recursos eram usados para o pagamento da folha complementar de pessoal. Por isso, não conseguíamos destinar o total desses recursos para manter o hospital em condições operacionais adequadas – comprar insumos, medicamentos, EPIs em quantidade suficiente.

É aí que a EBSERH traz um ganho, quando se transfere a folha de pagamento da Fundação para a EBSERH, por meio de concursos públicos. Esse é, na prática, o aporte adicional: os recursos do SUS “sobram”, entre aspas, para mantermos o hospital funcionando. Em outras palavras, o recurso é o mesmo, mas deixa de ser usado para pagar folha de pessoal – o que tem o efeito de um aumento.

Em relação aos recursos recebidos pela EBSERH, mesmo com toda a recente contenção orçamentária do governo federal, houve uma proteção à empresa em relação a esse contingenciamento. Os dados são claros. No orçamento do MEC, houve contingenciamento muito significativo na educação básica, no ensino técnico e na educação superior, e as universidades estão extremamente comprometidas em seu orçamento. Mas a EBSERH não passou por isso em nenhum momento. Ao contrário, houve aporte adicional de recursos, principalmente em 2020, por conta da pandemia. 

Com a transferência da folha de pagamento, qual o percentual do recurso SUS que o HC-UFU já conseguiu liberar até agora?

Em torno de 30%. Só há pouco tempo conseguimos terminar de montar nossa equipe administrativa para as licitações, contabilidade, compras. Antes, isso não existia no nosso hospital: ou era feito pela Universidade ou pela Fundação. De 2019 para cá, estamos nesse processo de organização. No ano passado conseguimos executar apenas 9% na nossa unidade gestora da EBSERH no hospital, porque o processo tinha acabado de se iniciar. Agora estamos em 30% de execução, com perspectiva de até o fim do ano chegar a 60%. 

Quando terminarmos o período de transição, deixaremos de gastar 70% dos recursos SUS com folha de pagamentos, e espero que até o fim do ano que vem isso esteja resolvido. Nos outros hospitais, mesmo na época de maior aporte financeiro da EBSERH e do governo federal, a transição demorou em geral três, quatro ou até cinco anos. Porque não é um processo fácil: é preciso desligar diversos profissionais das fundações e fazer novas licitações pelo hospital. 

No nosso caso, a situação se agravou por conta da pandemia. Já deveríamos ter concluído a transição, mas com a pandemia foi publicada a Lei Complementar nº 173, que interrompeu as convocações  dos concursos federais. Só em maio deste ano foi aberta uma exceção à EBSERH na lei. Antes da adesão, tínhamos 1,4 mil servidores pela Fundação. Agora, no fim do último mês de julho, chegamos a 970. Só conseguimos fazer a maior parte desses desligamentos este ano, porque só agora estamos conseguindo a reposição. 

Sob o contexto da pandemia, o governo federal tem disponibilizado recursos extras para a Saúde, inclusive para a abertura de leitos covid-19 nos hospitais da EBSERH Como foi essa questão no HC-UFU? Quais são as perspectivas para o futuro nesse sentido? Existem planos de ampliação da capacidade instalada do HC?

Costumo dizer que, se não houvéssemos aderido à EBSERH, a pandemia iria fechar o hospital. A EBSERH ficou temporariamente impedida de convocar pessoas por concurso, mas pôde fazer contratação emergencial. Houve um grande processo seletivo simplificado, a rede EBSERH contratou mais de seis mil pessoas, e aqui recebemos mais de 500 vagas de contratos temporários para atendimento à covid-19. Isso foi importante, pois não tínhamos possibilidade de fazê-lo antes da EBSERH. A FAEPU estava impedida na Justiça de fazer contratações, e a UFU estava sem orçamento para tanto.

Mas houve esse aporte, e com isso pudemos abrir 30 leitos de UTI covid-10 – um número expressivo, considerando que antes só tínhamos 40 leitos de UTI adulto. Abrimos uma enfermaria inteira de covid-19, com 52 leitos, e conseguimos abrir um pronto socorro específico para covid-19 para atendimento 24 horas. 

Junto a isso recebemos também aporte adicional de recursos da EBSERH para comprar medicamentos e insumos. O Brasil inteiro sofreu desabastecimento por conta do aumento do consumo. No entanto, a EBSERH tem a possibilidade de fazer compras centralizadas de medicamentos, insumos e equipamentos, como máscaras, luvas, aventais, respiradores, monitores cardíacos e bombas de infusão. 

Nós ainda estamos recebendo novos profissionais, mas ainda precisamos desligar um número grande de trabalhadores da Fundação, e para isso temos um concurso com mais de 2,3 mil vagas autorizadas. No entanto, a EBSERH já deixou claro que não tem orçamento este ano para chamar os 800 primeiros convocados (o primeiro concurso tem 800 vagas autorizadas, do total de 2,3 mil). Existe uma garantia orçamentária para cerca de 400 vagas este ano. Depois disso, dependemos do orçamento do ano que vem. Ou seja, com os trabalhadores temporários sendo desligados ao fim da pandemia, não vamos ter condições de manter os leitos ativos se não vierem os novos concursados. E o orçamento é bastante limitado. Houve um acréscimo, mas ainda não é suficiente para substituir integralmente nossos trabalhadores. 

Particularmente em relação à política de investimentos, outra dificuldade frequentemente observada entre hospitais públicos, o HC tem recebido recursos de capital em volume suficiente para promover a renovação tecnológica do seu parque de equipamentos, bem como para reformas de suas instalações físicas?

Isso é muito importante, por ser uma característica considerável do orçamento da EBSERH.  Nos últimos anos houve uma redução expressiva do orçamento da Universidade, que praticamente deixou de ter recursos de capital. Hoje, o hospital sozinho tem praticamente mais recursos de investimento do que a universidade inteira, e de 2019 para cá vem aumentando o orçamento de capital também. Isso porque não houve contingenciamento do recurso de capital da EBSERH.

Então hoje nós estamos com quatro grandes obras de ampliação de estrutura do hospital sendo financiadas com recursos da EBSERH. Temos uma obra de R$ 5 milhões para reforma da maternidade e do pronto socorro de Ginecologia e Obstetrícia; temos também a construção de um prédio novo para a área de ensino e a área administrativa, que envolve mais de R$ 6 milhões; e há ainda uma grande obra que é antiga, mas estava parada há muito tempo por falta de recursos e por questões judiciais, e agora foi retomada.

De que forma se dá hoje o financiamento do hospital? Todos os recursos para assistência, ensino e pesquisa provêm da EBSERH? Há possibilidade de captação de recursos de outras fontes? Em quais situações? 

Hoje, em geral, os recursos que vêm da EBSERH são recursos do MEC, além do que recebemos do SUS pela produção assistencial. Não temos recursos privados sendo investidos na EBSERH, e não tenho ideia se isso vai acontecer algum dia. Não há essa permissão legal. O que recebemos de recursos extras, para além do orçamento, são os que vêm de emendas parlamentares e os provenientes de Termos de Ajustamento de Conduta, via órgãos de controle. 

Um ponto importante da rede EBSERH é o incentivo para que os hospitais invistam mais em pesquisa clínica, em estrutura de ensino e de pesquisa. Nas discussões sobre a adesão à EBSERH, um argumento contrário sempre foi o de que a empresa fecharia os cenários de prática, o que dificultaria a entrada dos estudantes no internato e nos estágios. Isso não aconteceu, porque não existe essa diretriz na EBSERH. Essa é uma decisão local, e não da empresa. É a direção do hospital que organiza seus fluxos de entrada de estudantes. 

E o que vemos na prática e em todos os documentos oficiais da EBSERH, desde o início, é um aumento do incentivo para ampliação, do ponto de vista físico. Recebemos investimentos para construir salas de aula, blocos de ensino etc. Nosso hospital sempre teve dificuldade de ter salas de aula. Agora temos um projeto aprovado para a construção de um prédio de cinco andares para esse fim. Mais um exemplo: a EBSERH fez uma grande compra centralizada de mobiliário e equipamentos exclusivamente para locais de ensino. Existe o rumor de que a EBSERH vem para fechar o hospital para o ensino, mas isso não acontece, não aconteceu em nenhum lugar. 

Para concluir, a EBSERH também está investindo em equipamentos para os centros de pesquisa clínica dos hospitais, como freezers e centrífugas. Essa é uma fonte de recurso adicional, porque a pesquisa clínica, conforme a legislação nacional, recebe recursos dos órgãos de governo e da indústria farmacêutica para desenvolver protocolos de pesquisa. O recurso da EBSERH é um estímulo adicional que melhora a produção científica dos pesquisadores e a estrutura do hospital para a pesquisa.

Como, e por quem, os recursos extras são geridos? 

O recurso todo cai na nossa conta, na nossa unidade gestora EBSERH, e é gerido a partir da legislação pública. A EBSERH segue a lei das estatais – a  lei 13.303, que é um pouco melhor do que a lei da administração pública. Ela controla a gestão pública, mas é mais eficiente no sentido de agilizar a execução orçamentária. Mas todo dinheiro extra que cai para o hospital vem pela mesma unidade gestora: não há uma conta extra ou uma fundação. O hospital pode até se credenciar a algumas fundações para a execução da pesquisa clínica especificamente, conforme a legislação preconiza, mas em geral o recurso todo é utilizado da mesma forma, no nosso orçamento público.

Inclusive o das emendas parlamentares e dos TACs?

Sim. Tudo cai na mesma conta, e aí temos que usar fazendo licitação, seguindo a mesma legislação. Só existe uma particularidade para a pesquisa clínica. Nesse caso o hospital faz um contrato com alguma fundação para gerenciar os recursos da pesquisa clínica. Para recursos privados, envolvendo a pesquisa clínica, há uma legislação específica. 

Em geral, a gestão dos hospitais públicos costuma ser bastante criticada e acusada de ineficiente. Nesse sentido, o vínculo à EBSERH promoveu muitas mudanças na gestão do HC? Quais foram as principais áreas ou processos afetados? Tais mudanças têm sido bem absorvidas pelo corpo de funcionários da unidade? Ao fim e ao limite, o ingresso na EBSERH tem proporcionado maior profissionalização e modernização da gestão do HC?

A evidência que constatei na pesquisa do doutorado é que há uma priorização da gestão administrativa. Não havia muitas mudanças consideráveis na assistência e no modelo de gestão da clínica. A EBSERH vem para mudar os processos administrativos: gestão de pessoas, administração e finanças, orçamento, TI. Isso é o que eu constatei em 2018 [durante a pesquisa de doutorado]. E na minha prática, é exatamente o que eu estou vendo. 

No HC-UFU, não tínhamos nenhuma pessoa especializada em compras, licitações, contabilidade, gestão orçamentária. Porque o hospital não fazia isso, o hospital demandava para a universidade ou para a Fundação. Essa é, até o momento, para nós, a maior revolução. Tivemos que empregar especialistas da universidade, que vieram para cá com cargos de comissão, em novas funções – gerência administrativa, divisão orçamentária, divisão de contratos, unidade de licitação, setor de contabilidade... Tudo isso era novo para nós. Hoje há um grupo especializado de contadores, administradores, gestores de RH, que não havia antes. Essa é uma verdadeira transformação. 

Claro que isso gera muita tensão, não é fácil. Os trabalhadores têm dificuldade de se adaptar e a própria gestão tem que ir aprendendo gradativamente. Antes, o processo de compra se resumia a enviar um ofício. Mas agora é preciso organizar, verificar se há orçamento, se está dentro do prazo da licitação. É uma grande mudança de cultura. 

Por isso tivemos dificuldade no início. Em 2019, avançamos pouco.  Alguns cargos foram sendo liberados e as equipes começaram a ser montadas. Mas foi só em 2020 que o processo começou a “engrenar” e, agora estamos a todo vapor. Já estamos com mais de 30 contratos licitados e mais de 60 em processo de licitação. 

Outra questão importante trazida pela EBSERH é a padronização dos processos, que antes eram feitos de formas diferentes por cada hospital. A EBSERH vem construindo protocolos unificados, sejam assistenciais, sejam administrativos. Na hotelaria, por exemplo, cada hospital tinha o seu protocolo sobre a lavagem das roupas, a compra de material, a nutrição. Agora há um manual de boas práticas de hotelaria. Há também um manual de boas práticas em gestão da documentação clínica, algo muito sensível para os hospitais. Da mesma forma, na regulação, cada hospital tinha um padrão diferente, e agora há um norte. 

Essa padronização não significa uma camisa de força, mas serve para orientar. Muitas vezes os concursados vêm de experiências diferentes, ou mesmo sem experiência em hospital, então é importante termos os processos bem documentados. 
 
Isso tudo faz parte do novo contexto da governança pública: termos como “compliance”, “transparẽncia ativa” e “governança corporativa” não vêm só da EBSERH, mas estão na nova gestão pública como um todo.

O novo organograma que temos agora é muito mais moderno do que o que tínhamos antes. Em geral os organogramas de hospitais são muito verticais, separados por categorias. Mas o da EBSERH é mais horizontal, está mais adequado aos novos princípios da gestão pública. Nosso hospital sempre foi muito ligado à necessidade de resolver problemas assistenciais, mas não tínhamos, por exemplo, auditoria interna, vários setores administrativos e setores ligados à qualidade hospitalar e gestão hospitalar. Agora temos.  De fato – não é só um achado de pesquisa da minha tese ou o discurso da EBSERH –, na prática estamos vivendo aqui um novo processo de profissionalização da gestão. 

Há ainda os avanços no planejamento. Nosso hospital nunca fez planejamento de forma sistemática, e não é exceção. Sou da área de planejamento e esse é um dos temas que eu mais estudei. Em geral o gestor faz um planejamento, consolidado em um documento, mas depois o gestor seguinte não segue esse planejamento e constrói outro, e assim por diante. No entanto, a EBSERH vem evoluindo na construção do Plano Diretor Estratégico (PDE), com um modelo para todos os hospitais. Com isso, existe uma definição mais clara do que é meta, o que é objetivo etc. E uma novidade positiva é o monitoramento constante: há um esforço da rede, tanto no nível central quanto nos hospitais, de ter o planejamento e fazer o monitoramento mensal dos indicadores e das metas. 

Outro problema frequente nos hospitais públicos consiste no suprimento de medicamentos e materiais.  A aquisição de medicamentos e materiais por meio da EBSERH tem atendido às necessidades do hospital? O processo de compras via EBSERH tem resultado em ganhos de economicidade?  

Como estamos na transição, não estamos totalmente resolvidos. Antes, tínhamos mais de dois mil itens comprados pela Fundação, e hoje estamos com menos de 800. Quase todos os outros 1,2 mil já estão licitados, com ata para registro de preço na nossa unidade gestora. 

Isso é importante porque, com a licitação, com a concorrência, economizamos muito. Antes, parte dos nossos medicamentos eram licitados pela Universidade, e a outra parte, pela Fundação. A Fundação não segue a lei da licitação, então fazia compra direta. Às vezes os preços eram mais baixos, mas em geral eram mais altos do que quando as compras eram feitas pela universidade. Com licitações mais volumosas sendo feitas por aqui, conseguimos ter um maior número de fornecedores e diminuir os preços.

Além disso, as atas centralizadas da EBSERH representam um grande ganho. Não são uma solução fácil, já que comprar produtos para 40 hospitais nas cinco regiões do Brasil é complicado: mesmo que o preço de um medicamento, por exemplo, possa ser barateado, a logística de entrega é cara. Não são muitas as empresas que têm condições de fornecer o mesmo item para 20 estados, por exemplo. Assim, há também mecanismos para os hospitais realizarem compras regionais.

O barateamento dos produtos por meio das licitações ou compras centralizadas é a lógica. No entanto, a pandemia mudou isso ao trazer uma hiperinflação para medicamentos e insumos, então mesmo com licitação os valores estão muito elevados. Ainda assim, se não fossem as licitações, certamente estaríamos comprando a preços mais caros. Fazer a licitação, seja no hospital, seja na EBSERH –  que tem compra centralizada de vários itens – barateia o ítem. 

Hoje, já transferimos para a unidade gestora todas as atas que eram feitas pela Universidade, mas ainda mantemos a compra de ítens na Fundação. Esse é um grande desafio para nós, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a transição ainda não foi concluída – não estamos com todos os itens registrados na nossa unidade gestora. Deste modo, precisamos passar recursos para que a Fundação compre medicamentos, e ao mesmo tempo precisamos manter recursos na unidade gestora para realizar compras por aqui. Porém, os recursos não estão vindo de tantas maneiras diferentes. E em segundo lugar, porque, embora tenha crescido o aporte para insumos, o consumo devido à pandemia aumentou demais – consequentemente, subiram os preços.

Esse problema não é resolvido apenas pela forma de gestão. Há mais demanda e mais inflação do que o orçamento público suporta. Temos muita dificuldade de manter o estoque em níveis adequados.

Como é tomada a decisão sobre o que será adquirido de forma centralizada – com a EBSERH –, por meio de compras regionais ou por conta própria?

Existem alguns estudos e análises a partir das experiências. Muitas compras centralizadas não deram certo. Mas a sede tem uma Diretoria de Administração e Infraestrutura que analisa quais empresas têm distribuidoras regionais, quais conseguem oferecer o fornecimento centralizado em algum distribuidor para todo o Brasil. 

A decisão sobre a forma da compra também depende em grande parte do tipo de insumo que se vai comprar, e leva em consideração o valor do ítem, por exemplo. Não é vantajoso comprar de forma centralizada itens muito baratos – devem ser itens caros, cujo preço caia consideravelmente quando comprados em grande volume.

Depois, os hospitais devem decidir se vão optar por aderir ou não às atas da EBSERH, porque pode acontecer de a opção de compra de um hospital ser mais vantajosa do que a compra centralizada com a EBSERH. Isso varia muito conforme a região. Aqui em Uberlândia, estamos em posição privilegiada por estarmos próximos das indústrias, dos distribuidores nacionais. O mesmo acontece no Rio e em São Paulo: é mais fácil comprar nessas cidades do que em Cajazeiras (PB) ou Araguaína (TO), onde há hospitais da EBSERH. A EBSERH compra muitos itens para para hospitais do Norte e Nordeste, que têm maior dificuldade de acesso. Essa possibilidade de trabalhar em rede é muito interessante. 

Outra forma de um hospital baratear as compras é aderir às atas de outros hospitais: por exemplo, se um grande hospital faz ata para algum medicamento que não conseguimos comprar por aqui, podemos transferir recursos para esse hospital e comprar na mesma ata. o HC-UFU já aderiu a várias atas do Brasil inteiro. 

Vale ressaltar que um ponto importante para possibilitar as compras regionais ou centralizadas é a padronização da descrição dos insumos, o que está em andamento. 

Desde a adesão, houve alteração da inserção do hospital na rede ou mudança no seu perfil?  A Ebserh de algum modo alterou a relação do hospital com a rede e o gestor do sistema de saúde local?

Não. Estamos com o mesmo contrato de gestão com o SUS, que continua sendo assinado pela Secretaria de Saúde, pela universidade e ainda pela Fundação, pois estamos na transição. Nosso contrato com a gestão do SUS vence agora no fim do ano e já estamos em tratativas de uma repactuação do contrato com a rede EBSERH. Mas a perspectiva é que não haja alteração significativa. 

Nós é que definimos o que oferecemos para a rede ou não. A EBSERH não interfere na pactuação da gestão. A relação é a mesma, e seguimos a lei do SUS de contratualização. O que muda é o que temos para oferecer, com aumento ou diminuição da oferta de algum serviço. E estamos numa perspectiva de ampliar serviços. Não agora, por conta da pandemia e da transição. Mas vamos ter mais a oferecer assim que tivermos um redimensionamento adequado do nosso quantitativo de trabalhadores – a perspectiva é a de, no fim da transição, termos mais funcionários do que tínhamos antes.

A criação da EBSERH foi historicamente muita criticada e combatida por entidades sindicais e por outras organizações, sob o argumento de que o vínculo à empresa colocava em questão à autonomia universitária, uma vez que as atividades de assistência, ensino e pesquisa realizadas nos hospitais estariam sob o risco de interferência da mesma. Como isso tem se passado no HC-UFU?  De algum modo o hospital sentiu pressão neste sentido?

O hospital é da Universidade, sempre será. A definição da gestão do pessoal da UFU é feita exclusivamente pela Universidade. Os servidores da UFU continuam vinculados (do ponto de vista dos seus direitos de RJU) à Universidade e ao MEC. Porém, a gestão do cotidiano passa a ser nossa, com as nossas diretrizes.

A gestão de pessoas tem que seguir algumas diretrizes da EBSERH e da legislação pública.  O estatuto do servidor público continua sendo seguido por nós. Então não há uma perda de autonomia. Pelo contrário, em grande medida aumenta a autonomia, porque o hospital não tinha gestão sobre vários processos – e passa a ter. 

No ensino e pesquisa, é o comitê local, o colegiado executivo, quem define os fluxos de estágio, o recebimento de alunos para aulas práticas e a pesquisa. A EBSERH não tem diretrizes sobre como receber estudantes. O que existe é um monitoramento.

No nosso caso, antigamente não tínhamos uma gerência de ensino e pesquisa, mas hoje temos. Há também uma gestão mais profissional do ensino. Antes os alunos entravam e saíam do hospital sem a gestão do hospital ficar sabendo quem eram, porque a relação era direta com o professor, o médico ou enfermeiro, na ponta. Agora, embora essa relação continue existindo, há uma padronização. Mas não há nenhuma perda de autonomia – é uma definição local. 

E o incremento do número de profissionais faz com que aumente o número de preceptores para residência e graduação. Quando o hospital melhora a estrutura e os serviços, melhoram também as condições do cenário de prática dos estudantes.

Ao verificarmos os dados disponíveis no Datasus, identificamos que não houve, desde a adesão, uma mudança significativa de alguns indicadores básicos do hospital. Em quanto tempo após a adesão à EBSERH se espera que apareçam benefícios mais claros para a população, com aumento da capacidade produtiva do hospital e ampliação do acesso? 

Isso depende muito do processo de transição e de como estava o hospital antes. Aqui, estávamos no limite, com muitos leitos fechados durante dois anos. Nossa expectativa é a de que, quando conseguirmos recompor o quadro de profissionais e finalizarmos as obras, vamos reabrir os leitos que estavam fechados e ainda ampliar o seu número. Porque essa ampliação está condicionada a ter recursos para construir e equipar leitos, comprar insumos e ter pessoal. Não tínhamos isso antes da EBSERH. Agora estamos começando a ter.

Essa é a perspectiva. Porém, tudo depende do financiamento do SUS e das condições locais. Há o exemplo do hospital de São Carlos [o Hospital Universitário da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)], que, com investimentos da EBSERH, construiu uma nova maternidade. No entanto, a prefeitura não fez a contratualização, pois já tinha uma maternidade em outro hospital. Então, se o SUS tiver condições e interesse de contratualizar serviços novos, penso que temos condições de pensar em aumento de leitos. Mas não podemos abrir um serviço sem a pactuação com o SUS. 

Hoje, passados três anos, qual balanço pode ser feito sobre a adesão à EBSERH? As dificuldades e desafios de outrora foram equacionados? Em que medida a vinculação à EBSERH contribuiu para os resultados alcançados? O que pode ser aprimorado neste modelo de governança Hospital-Universidade-EBSERH? E o contrato, em que pode ser melhorado?

Em linhas gerais, eu percebo claramente que há vários avanços. Principalmente pelo contexto de desfinanciamento – não só subfinanciamento – que as universidades vivem, que já era evidente em 2018 e está ainda mais. 

Mas a EBSERH não é a solução de todos os problemas. Sendo uma empresa pública, vinculada ao MEC, ela vai sofrer todas as influências que qualquer empresa pública e qualquer ministério sofre na nossa lógica de governança político-partidária. Eu sou defensor da administração pública, direta ou indireta. É muito melhor do que o modelo que emprega fundações de apoio, que durante anos se mostrou necessário por conta da legislação, mas que se mostrou insuficiente por vários motivos – inclusive por insuficiência da gestão, por motivos de controle, de transparência, de cumprimento da legislação. Não tenho dúvidas de que o modelo de empresa pública e de autarquia pública são modelos mais eficientes e transparentes do que o de fundação privada.

Porém, a empresa pública também sofre todas as nossas intempéries da gestão pública. Estamos duplamente vinculados ao MEC: na universidade pública e na EBSERH. Hoje, a priorização que se tem dado para as universidades públicas é menor do que a conferida à  EBSERH. Mas pode ser que um dia isso se inverta. Não se pode garantir nada na gestão pública, porque as mudanças de governo alteram muito a política pública. 

Não tenho dúvida nenhuma de que a adesão à EBSERH era a única saída. Hoje, a gestão pública brasileira só desenhou essa possibilidade.  Quem não aderiu à EBSERH precisa pensar em outra forma de gerenciar o hospital que não seja pela gestão pública, como por meio de Organizações Sociais. As fundações de apoio, que eram o modelo existente, estão extintas, uma vez que o TCU já deixou claro que não podem mais ser utilizadas. Esse é o impasse: a EBSERH é o único modelo de gestão pública.

Mas, além de ser o único modelo, eu também não tenho dúvida – tanto pelo meu estudo enquanto pesquisador, quanto pela minha atuação agora como gestor – de que é um grande avanço. Há desafios do cotidiano da gestão, como sempre haverá. Há dificuldades de relacionamento naturais, por exemplo, se o gestor do hospital não tiver uma relação institucional com a reitoria e com as unidades acadêmicas. Felizmente, é o reitor quem indica a superintendência para a EBSERH nomear. 

Se a gestão do hospital não for parceira da reitoria, a relação é insustentável, porque a reitoria continua sendo presente no hospital. Essa é uma preocupação das universidades, de a reitoria não ter mais nenhum grau de influência dentro do hospital. Pelo contrário, o hospital é da Universidade. O reitor é o dirigente máximo, eleito democraticamente, e é o condutor das diretrizes do hospital. Seguindo uma nova legislação, uma nova contratualização, mas com a diretriz geral dada pela reitoria. 

A operação e a execução são feitas agora por uma gestão que tem todas as ferramentas para ser uma gestão profissional. No entanto, como pesquisador com análise crítica, sei que uma ferramenta de qualificação da gestão não necessariamente garante a qualidade. Ela dá condições para se fazer uma gestão mais profissional, mais democrática, mais transparente, mas apenas se usada de forma adequada. Antes era muito difícil até mesmo conseguir as ferramentas. Hoje temos acesso a elas, mas a gestão local, da universidade, e a gestão do governo federal devem fazer uso adequado delas. 

Avalio que hoje temos mais perspectivas de financiamento e de adequação da força de trabalho, e que há mais ferramentas de profissionalização da gestão. Só que continuamos condicionados à lógica da gestão pública, para o bem e para o mal. As mesmas questões sobre ter eleições democráticas ou não, ter indicações mais vinculadas a partidos políticos ou não, ter interesses mais privatistas ou mais publicistas dentro da universidade. A mesma dinâmica contínua. Só vem um ator diferente, que era uma fundação privada e passa a ser uma empresa pública.