Data da publicação: 14 de setembro de 2021

Autora: Raquel Torres / OPGH

A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) voltou a debater a contratualização de seu Complexo Hospitalar com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), e uma definição quanto à adesão deve ser tomada ainda este ano. 

Passados dez anos desde que o Congresso Nacional aprovou a criação da Empresa – para tentar solucionar diversos problemas de gestão, inclusive relacionados à contratação de trabalhadores –, dentre os 50 hospitais universitários federais existentes no país, 40 aderiram. Há poucas exceções: o Hospital Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); e o Complexo Hospitalar da UFRJ. 

Com a possível contratualização do Complexo no Rio de Janeiro, o ciclo de adesões dos hospitais universitários federais se encerrará, uma vez que as duas unidades restantes – ligadas à Unifesp e à UFRGS – operam sob modelos de gestão peculiares que já lhes asseguram relativa flexibilidade administrativa e autonomia de decisão. 

No caso da UFRJ, houve no passado uma intensa discussão interna que foi paralisada em setembro de 2013, quando a possibilidade de adesão à empresa pública foi retirada de pauta e não chegou a ser votada pelo Conselho Universitário. Na época, alguns dos argumentos contrários a essa adesão se referiam a uma possível ameaça à autonomia universitária, à gestão centralizada no governo e à necessidade de cessão do patrimônio dos Hospitais para a EBSERH. Havia também o receio de que a mudança pudesse sinalizar um risco de privatização dos hospitais, o que no entanto é vedado pela legislação da empresa, segundo a qual os atendimentos devem ser realizados exclusivamente pelo SUS. 

No fim de 2020, o Conselho do Centro de Ciências da Saúde decidiu solicitar à reitoria, a pedido dos diretores dos hospitais do Complexo, a retomada das discussões e negociações. O Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj) imediatamente lançou uma nota contrária; a Regional Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) também tem impulsionado uma campanha pela não-adesão. No entanto, há uma expectativa que, dessa vez, a questão possa ser discutida e votada. 

O Complexo Hospitalar da UFRJ conta com nove unidades* e o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) é a maior delas – é também um dos maiores hospitais do estado do Rio de Janeiro, segundo a UFRJ. De acordo com o SIA/SUS, em 2019 e 2020 foram mais de 260 mil consultas médicas.

Foi dele que partiu inicialmente a ideia, depois debatida e acatada pelas demais unidades, de sugerir a retomada das negociações com a EBSERH. Assim, é fundamental compreender sua situação atual e os motivos que levaram a essa proposta. Para tratar deste tema, o Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH/Fiocruz) ouviu Marcos Freire, diretor do HUCFF, e Amâncio Paulino de Carvalho, diretor da Divisão de Pesquisa da mesma unidade. 

A importância do HUCCF

Inaugurado em 1978 na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, o HUCFF é uma referência em média e alta complexidade para os moradores de toda a Região Metropolitana do estado, sobretudo da capital e da baixada fluminense. “Somos, por exemplo, o único hospital no estado para realização de implante coclear pelo SUS, e também o único que faz biópsia muscular na rede pública. Fazemos também transplante de medula óssea; voltamos a oferecer transplante de córnea após cinco anos sem essa oferta;  também reativamos o transplante de fígado e estamos nos credenciando para realizar transplantes de coração e pulmão”, enumera o diretor Marcos Freire. 

Apesar da relevância, a unidade viveu recentemente períodos difíceis, com orçamento estrangulado, fechamento de leitos, corte na oferta de alguns serviços, problemas de manutenção e falta de pessoal. Marcos Freire aponta que alguns destes problemas foram minorados nos últimos dois anos a partir de mudanças na gestão – com a regularização da compra de insumos por meio de licitações e a melhoria na execução dos recursos recebidos por meio do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf). Além disso, em sua gestão houve também o recebimento de verbas via emendas parlamentares de bancada, que tornaram possível a realização de reformas. 

Ele acrescenta ainda que, no contexto da pandemia de covid-19, foram recebidos recursos que possibilitaram a abertura de cerca de 100 leitos,  tanto de UTI como de enfermaria – o hospital, que no começo da pandemia operava com cerca de 250 leitos, chegou a ter 350 nos piores momentos da crise. Também houve a contratação de cerca de 700 profissionais temporários; a chegada desses profissionais foi fundamental pois, no começo da pandemia, centenas de trabalhadores foram afastados por terem condições de saúde que os colocavam em maior risco de desenvolver covid-19 grave. 

O relatório de gestão de 2020 informa que os investimentos necessaŕios para as contratações e a abertura de leitos vieram da Secretaria de Saúde do município, do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde e de doações, principalmente do Movimento União Rio e da RioSaúde (a Empresa Pública de Saúde do município do Rio de Janeiro)  Os recursos foram operacionalizados por meio de parceria com a Coppetec, uma das fundações de apoio ligadas à universidade.

As necessidades atuais 

Uma das principais motivações para se propor novamente a entrada da UFRJ na EBSERH agora é a necessidade de solucionar o problema dos recursos humanos. Além dos trabalhadores temporários, que serão dispensados como fim da pandemia, há cerca de 600 atuando com vínculos precários, segundo Amâncio Paulino de Carvalho: “A situação do nosso complexo hospitalar é muito difícil. Por não termos aderido à EBSERH, nós perdemos a oportunidade de ter o pessoal contratado pela empresa, que, num primeiro momento, é a atividade prática mais importante que ela desenvolve. Perdemos a oportunidade de superar os vínculos precários, chamados de extraquadros – as pessoas que não têm vínculo com a universidade e não podem ser substituídas quando saem. Não há perspectiva. Sem a EBSERH, só conseguimos substituir os profissionais do Regime Jurídico Único (RJU)”, diz.

Ele chama a atenção para o fato de que, com a saída dos profissionais temporários e eventualmente dos que não possuem vínculo, haverá sérias limitações de pessoal que levarão ao fechamento de leitos. “A estimativa é que cheguemos a 200 leitos, e isso é metade do que hospital historicamente teve”, calcula, lembrando que tal perda não é ruim apenas para a assistência à população, mas também para a pesquisa: “A pesquisa clínica integrada à pesquisa básica, que é a vocação dos hospitais universitários, fica prejudicada quando não há pacientes suficientes”.

Quanto à manutenção da força de trabalho e da produção do hospital, Marcos Freire é taxativo: “Esse é nosso grande problema. Somente se aderirmos à EBSERH, será possível manter o nível de produção que conseguimos atingir hoje. O hospital nunca teve 63 leitos de CTI, por exemplo – se antes tinha 14, já era muito. Para manter o nível precisamos ter pessoal”, afirma. 

No curto prazo, portanto, espera-se que a contratualização permita a contratação de pessoal. Já no médio e longo prazos, há uma perspectiva de transformação mais profunda da gestão hospitalar: “A EBSERH discute padrões, estabelece protocolos, estabelece programas de incentivo à qualidade e à segurança do paciente, lida com problemas práticos da gestão, como a organização dos serviços e a gestão de pessoas, oferece meios que permitam a racionalidade dos gastos”, enumera Carvalho. 

Tema segue controverso

Apesar da convicção dos gestores do Complexo Hospitalar, a adesão à EBSERH ainda não conta com o apoio unânime da comunidade universitária. Existe uma campanha contra a medida, que conta com a adesão de parte dos trabalhadores da universidade e do movimento estudantil. Os argumentos contrários permanecem os mesmos apontados em 2012 e 2013. Entre os principais estão o receio de perda autonomia universitária, da possibilidade de atendimento fora do SUS e de um possível enfraquecimento do tripé pesquisa-ensino-extensão.

Tanto Freire quanto Carvalho defendem que estas questões já estão vencidas; no caso do atendimento privado, porque ele é vedado pela lei da EBSERH; e no caso dos demais pontos, porque essas preocupações não se confirmaram nos demais hospitais universitários que já aderiram à empresa. “Há metas e cobrança  em relação à produtividade, com a necessidade de se fornecer relatórios semestrais, mas é uma cobrança positiva. Mas não há perda de autonomia – os gerentes continuam sendo indicados pelo reitor da universidade, por exemplo”, cita Freire. 

Apesar disso, ainda deve haver tensões em torno do tema: “Acredito que a oposição será mais concentrada e mais forte. Isso porque, naquela época [em 2013], houve resistência em outros lugares do Brasil, já que havia outros hospitais fazendo a mesma discussão. Agora, como os demais já aderiram à empresa, o debate na UFRJ tende a envolver entidades de todo o país”, avalia Carvalho. 

A grande diferença, de acordo com ele, é que agora há fatos mais concretos para se discutir: “Antes a EBSERH mal havia saído do papel, embora houvesse uma perspectiva importante por conta do apoio do governo federal. Mas hoje ela deixou de ser expectativa incerta para se tornar de fato uma empresa de grande porte, com 31 mil empregados públicos atuando nos hospitais, e que administra 40 hospitais de 32 universidades. Nenhuma dessas universidades trouxe questões relacionadas à perda de autonomia, houve um crescimento da força de trabalho nos hospitais, houve aumento no total de residentes, a produção assistencial está muito próxima do limite da contratualização. Acredito que os argumentos para a adesão estão baseados em fatos, de modo que os conselheiros terão mais facilidade para examiná-los de uma forma concreta e tomar sua decisão”, avalia. 

Embora Freire e Amâncio estejam convencidos dos benefícios da adesão, há que se considerar que o contexto político e econômico atual é diferente do de uma década atrás, e que isso tem implicações: “A EBSERH sofre com uma situação econômica difícil no país. Tivemos um primeiro impulso, na gestão Dilma Rousseff, quando a economia ainda estava em crescimento. A decisão política do governo de caminhar essa proposta da EBSERH para a direção dos hospitais era muito forte. Então, no início, a contratação de pessoas para trabalhar nos hospitais foi muito intensa. Depois o país entrou em grave crise econômica, e desde o governo Temer o aperto sobre o orçamento aumentou, sobretudo nas áreas sociais. No governo Jair Bolsonaro também temos um conjunto de atitudes que colocam em segundo plano as atividades da área da saúde, como a limitação do orçamento. E é claro que a EBSERH sofre”, diz Carvalho.

Ele aponta que em alguns casos a EBSERH tem tido dificuldades no processo de substituição dos servidores de RJU por empregados concursados, com o processo sendo mais lento do que o esperado. Ainda assim, pondera que o fato de a EBSERH ser uma instituição consolidada reduz esse sofrimento. E cita como exemplo dessa força institucional os caminhos da Lei Complementar nº 173/2020, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus.

Esta lei, aprovada pelo Congresso em abril do ano passado, estabeleceu que as instituições não podem aumentar suas despesas com o quadro de pessoal durante a pandemia. No entanto, em 2021 foi aprovada a Lei Complementar nº 180, que coloca a EBSERH como exceção a essa regra. “Com a EBSERH, os hospitais universitários  ganharam uma força e capacidade de influência política que não tinham antes. Antes, era preciso criar uma representação e buscar contato com o mundo político para conseguir o diálogo; hoje, essa força se condensa no episódio da lei nº 173”, avalia Carvalho.

Existe a previsão de que o tema da contratualização seja encaminhado pela reitoria da universidade a partir de setembro. A partir daí, possivelmente haverá uma intensificação dos debates, e o OPGH irá continuar abordando a questão. Na próxima semana, publicaremos uma entrevista com Nilton Pereira Júnior, superintendente do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU). A UFU foi a mais recente universidade a aderir à EBSERH, em 2018, e o gestor trará sua avaliação sobre o processo.
 

* O Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), o Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis (Hesfa), o Instituto do Coração Edson Saad (Ices), o Instituto de Doenças do Tórax (IDT), o Instituto de Ginecologia (IG), o Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC), o Instituto de Psiquiatria (Ipub), o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) e a Maternidade Escola (ME).