Data da publicação: 12 de setembro de 2022.
Autores: Francisco Braga, Simone Ferreira e Mônica Wojciechowski (OPGH/Fiocruz)

Qualificar a atenção e a gestão hospitalar no âmbito do SUS tem representado um enorme desafio para os gestores públicos. Há um relativo consenso quanto aos problemas estruturais que afetam a organização e a prestação de cuidados hospitalares em nosso sistema público, a começar da oferta insuficiente e mal distribuída de leitos e serviços especializados e do subfinanciamento dessas ações, envolvendo também a predominância de estabelecimentos de pequeno porte de baixa resolutividade e eficiência no parque hospitalar nacional; as persistentes dificuldades de integração dos hospitais à rede de serviços e, ainda, a incipiente modernização e profissionalização da gestão das unidades públicas.  

Iniciativas importantes dirigidas à qualificação da atenção hospitalar no SUS têm sido implementadas ao longo das duas últimas décadas, a culminar com a implementação da PNHOSP – Política Nacional de Atenção Hospitalar em 2013. Entretanto, é forçoso admitir que os resultados alcançados por essas medidas ainda se encontram distantes de superar a crônica crise da atenção hospitalar no SUS. Os problemas evidenciados no atendimento hospitalar aos pacientes graves durante a pandemia não deixam margem a dúvidas neste sentido.   

No intuito de contribuir para o debate acerca das estratégias de aprimoramento da organização, gestão e prestação de cuidados hospitalares no SUS, desenvolvemos a série “Iniciativas estaduais recentes no âmbito da atenção hospitalar”, na qual já publicamos as ações implementadas nos estados do Espírito Santo e Minas Gerais. Dando continuidade a este trabalho, o OPGH entrevista agora Maria Alcina Romero Boullosa, Diretora de Atenção Especializada da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (SESAB). Na matéria, ela apresenta um panorama da atenção hospitalar pública na Bahia e as medidas propostas pelo novo Plano de Atenção Hospitalar para a sua melhoria.

Em 2019 a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB), com apoio da cooperação técnica realizada pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), iniciou a elaboração do Plano de Atenção Hospitalar - PAH do Estado da Bahia, algumas das recomendações apresentadas pela consultoria já foram colocados em prática pela SESAB.

Com um parque hospitalar que abriga atualmente 76 hospitais especializados e 497 hospitais gerais, a Bahia é um dos Estados com o maior número de leitos do país, atrás somente de São Paulo, Minas Gerais Rio de Janeiro, de acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

 

OPGH: Como você caracterizaria a situação da atenção hospitalar prestada pelo SUS hoje na Bahia?

Maria Alcina Romero Boullosa: Podemos caracterizá-la como satisfatória, com avanços muito importantes, tanto no aumento da capacidade instalada de leitos quanto na regionalização destes leitos, o que talvez seja mais significativo, do que a própria ampliação.

Há uma década, existia tanto um déficit de leitos complementares quanto uma concentração de leitos resolutivos ao longo do litoral do estado. O território do semiárido, que compreende quase 70% do estado, possuía muitos vazios assistenciais. Estamos conseguindo minimizar as desigualdades regionais.

Hoje cerca de 25 a 30% da nossa rede está instalada em hospitais de pequeno porte, ou seja, em hospitais com menos de 50 leitos com baixa taxa de ocupação e com pouca capacidade de resolução das situações dos usuários.

 

Tabela 1 _ Bahia

 

Talvez esse seja o nosso grande desafio. Otimizar a capacidade instalada, melhorar o aproveitamento, ordenando o fluxo regulatório e aproveitando melhor esses leitos, que hoje estão muito enfraquecidos, com baixo financiamento, em municípios pequenos e sem capacidade de fixação de profissionais especializados.

Outra dificuldade da Secretaria hoje é operacionalizar a contratualização dos serviços, monitorar e acompanhar indicadores de qualidade.

Além disso, estamos tentando modificar ou ao menos diversificar o modelo de gestão de nossas unidades. Os modelos de gestão hoje são: gestão direta da secretaria de saúde, gestão pública com funcionários contratados por prestação de serviço (arranjo com quadro profissional formado por servidores efetivos, complementado por contratados por prestação de serviços), gestão indireta por OS, além de parcerias público-privadas (PPP).

No ano passado, trabalhamos em um projeto de consultoria com a Doutora Marcia Amaral e Doutora Lenir Santos, que culminou no decreto nº 20.895 de 19/11/21  que institui o programa de gestão de unidades por instituições de ensino. O decreto está publicado, mas nós ainda não experimentamos nenhuma gestão deste tipo.

Temos ainda uma maternidade nova no município de Ilhéus, sob a gestão da Fundação Estatal da Saúde da Família. Fundação Pública de Direito Privado responsável até então pela gestão da atenção primária de alguns municípios, a quem a SESAB delegou também a gestão de unidades hospitalares.

 

OPGH – Muitos estados não possuem um plano para a atenção hospitalar, embora reconheçam, de algum modo, problemas associados à gestão e à atenção hospitalar. O que motivou a SESAB a desenvolver este plano e o que está previsto nele?

M.A.: - Estamos aqui na Atenção Especializada desde 2013, sempre muito preocupados com a questão hospitalar, a questão do subfinanciamento, do não aproveitamento das estruturas existentes etc. Também não tem nenhum mecanismo de cofinanciamento da atenção hospitalar e basicamente isso foi que nos motivou a apresentar ao novo gestor da SESAB a necessidade desse plano de atenção hospitalar.

Afora a revisão da categorização dos hospitais, a SESAB também está definindo novos critérios de repasse de recursos para os hospitais, ou seja, como alocar melhor recursos para atenção hospitalar. 

Hoje utilizamos um sistema de credenciamento de hospitais por serviço – Cardiologia, UTI neonatal etc., onde o custeio é por produção de procedimentos. Em algumas unidades a contratualização ainda não é bem definida, neste caso o modelo de financiamento é por orçamento global para as ações de média complexidade (pré-fixadas) e alta complexidade (pós-fixadas), mais ou menos ao que é usado no resto do Brasil nas políticas e contratualização.

A alocação estadual aporta um bom valor e por isso queremos organizar com critérios muito bem definidos, além de priorizar quais são as necessidades imediatas. Construir termos, blocos/módulos de financiamento instituídos por decretos governamentais, seguindo todos os itens corretamente, visando sempre uma transparência maior.

 

Tabela 2 _ Bahia

A meu ver, estamos fazendo um movimento contrário ao movimento de municipalização das unidades hospitalares. Acho que isso está acontecendo no Brasil, o subfinanciamento da atenção hospitalar tem levado a esse movimento contrário. A secretaria tanto ampliou a rede própria, porque construiu novos hospitais nessas regiões de vazio assistencial, quanto assumiu a gestão de parte dos leitos municipais, em situações em que as prefeituras manifestam dificuldades para mantê-los em funcionamento. Assim, pode-se dizer que tem havido um movimento de estadualização desses leitos.

 

Tabela 3 _ Bahia

 

OPGH – Como vocês repassam hoje os recursos da SESAB para os hospitais sob gestão municipal?

M.A.: - Na forma de credenciamento. Citando um exemplo: credenciamos um serviço de obstetrícia. O hospital expõe as dificuldades e a SESAB então credencia esse hospital e financia uma quantidade de leitos, seguindo o modelo da Rede Cegonha. Esses leitos passam a ter uma gestão dupla.

O credenciamento segue o modelo da PNHOSP, de orçamentação global; entretanto, como os valores dos leitos de obstetrícia clínica e cirúrgica são calculados com base no valor médio de AIH, o recurso termina sendo insuficiente.

35% dos leitos hospitalares da Bahia estão sob gestão dupla. 9310 leitos em instituições com gestão municipal, porém, credenciados pela SESAB. Se eu somar isso a 9906 leitos sob gestão estadual também e os da rede própria, eu tenho basicamente 70% dos hospitais da Bahia sob gestão estadual.

Tabela 4 _ Bahia

Não tenho aqui uma organização regional ou macrorregional onde eu tenha uma rede vinculada, onde os hospitais menores tenham uma referência em hospitais intermediários e possam ajudar em alguma coisa. Então eu tenho aqueles da SESAB, da rede estadual, ou alguns poucos filantrópicos ou municipais sob gestão estadual, que servem, vamos dizer assim, como executores para a regulação estadual.

 

OPGH – O enfrentamento da pandemia trouxe enormes desafios para o SUS. A atenção hospitalar foi sobrecarregada com o aumento da demanda de internações para os pacientes graves. A pandemia antecipou questões que estavam previstas no plano? Como você avalia a possibilidade de manutenção do que foi implementado?

M.A.: - A pandemia proporcionou a ampliação tanto de leitos estaduais como dos municipais credenciados. Chegamos a ter 1600 leitos de UTI dedicados à Covid e destes conseguimos manter na rede 429 leitos (adultos e pediátricos), o que fez a gente diminuir muito o nosso déficit de UTIS no estado. Praticamente todas as macrorregiões do estado passaram a ter cobertura mínima desejada de leitos de UTI.

 

Tabela 5 _ Bahia

Além dos leitos, considero importantes dois outros avanços conquistados durante a pandemia: o ganho com sistemas de informação, instalação de business intelligence (Bis) de taxa de ocupação e acompanhamento online de leitos, inclusive com acompanhamento de indicadores de mortalidade e outros indicadores de qualidade. Esse ganho vai ficar para sempre. Foi importante e catalisado pela pandemia.

O outro avanço foi no âmbito da governança, esse termo que é tão falado e pouco usado. Avançamos muito na governança com os atores que compõem o sistema único de saúde, principalmente entre o COSEMS – Conselho de Secretários Municipais de Saúde e a SESAB. A partir disso, nasceu uma parceria e uma integração muito grande com os municípios, decisões de rede tanto para ampliação como para desmobilização, com reuniões semanais.      

 

OPGH – Conte-nos um pouco mais sobre como se deu a primeira etapa da elaboração do Plano Diretor de Atenção Hospitalar do estado.      

M.A.: A primeira etapa foi um diagnóstico da situação de saúde com os prestadores e os secretários municipais. Também fizemos nove oficinas macrorregionais. Esse diagnóstico veio a partir do levantamento dos macroproblemas macrorregionais, sempre com a participação de gestores, técnicos e prestadores. Foram visitados muitos hospitais pela equipe da consultoria, que trabalhou sempre com o conhecimento do Conselho Estadual de Saúde. Esse acompanhamento resultou mais tarde na proposta de classificação hospitalar - Hospital de Referência Estadual, Macrorregional, Regional, Complementar de Região e Local - cada um deles com os critérios específicos) e também das carteiras de serviços relativas a cada tipo de estabelecimento. Tais propostas foram validadas por um Grupo de Trabalho integrado por várias áreas técnicas da SESAB e COSEMS e aprovadas em resolução pela CIB.

Já aprovamos dois produtos e agora vamos para o terceiro, talvez o mais difícil, que são os módulos de financiamento, que dependem do que entendemos como necessidades prioritárias. Para a SESAB a atenção ao parto e nascimento é prioritária. Vamos apresentar duas propostas de modelo de financiamento e discutir o que vamos fazer, a partir do Plano de Atenção Hospitalar, com os hospitais de pequeno porte.

A política de atenção hospitalar de hospitais de pequeno porte da Bahia é a mesma desde 2015, baseada ainda na Portaria  1044 do Ministério da Saúde, que prevê um modelo de organização e financiamento que estimula a inserção desses hospitais na rede hierarquizada de atenção à saúde.

Esta portaria prevê pagamento de um aporte, o pagamento era de R$1.700,00 a diária do leito/ mês. Aqui na Bahia nós pagamos R$ 3.000,00 a diária/mês e firmamos um compromisso de aportar enfermeiro obstetra e um ponto de telemedicina em cada hospital que aderiu à política. Hoje temos 42 unidades aderidas a essa política. É um financiamento global, os enfermeiros são alocados pela SESAB através de um contrato, também com a Fundação Estatal de Saúde da Família. O município adere e a gente faz o contrato com metas para as três clínicas: clínica médica, obstetrícia de risco habitual e pediatria clínica.

Com o plano de atenção hospitalar não poderemos ter duas políticas sobrepostas. A nova portaria classificou os hospitais como locais, complementares, regionais, macrorregionais. Esses 42 hospitais, ainda hoje financiados conforme a política para hospitais de pequeno porte, integram um grupo de 200 hospitais locais, então não podemos manter esse financiamento e, ao mesmo tempo, incluí-los na nova forma de repasse, pois haveria um financiamento duplo.

Ainda não finalizamos a discussão sobre o que fazer com esses hospitais de pequeno porte. Teremos um financiamento de que forma? Um financiamento global por capacidade instalada ou por produção? É um processo de construção delicada.

Outra proposta seria que essas unidades locais passassem a ser unidades de apoio à atenção primária e não houvesse mais a obrigatoriedade de internação. Mas, qual seria o impacto político, social e sanitário disso? Essa é a discussão dos hospitais de pequeno porte em todo o Brasil.

Cada unidade emprega muita gente. Ela tem um papel social no município, então como fazer? O melhor seria examinar cada estabelecimento, com um olhar muito individualizado. Outra ideia seria transformá-los em unidades especializadas, saúde popular, saúde mental, saúde ocular.

Seria interessante ter um hospital por região, mas os municípios não têm fluxo para isso.  Muitas vezes estes hospitais estão em lugares pequenos, com vias de acesso e malha rodoviárias ruins. Além disso, os municípios têm poucos veículos de transporte, quando colocamos uma especialidade em um lugar, é como se tivesse que duplicar a capacidade de transporte sanitário de alguns municípios. As mudanças têm outras implicações que precisam ser consideradas.

 

OPGH – O plano também propõe o aprimoramento dos processos de contratualização com municípios e prestadores. Como você avalia a experiência da SESAB com a contratualização até hoje? Quais as mudanças propostas e por quê?

M.A.: - Uma política de repasse fundo a fundo, sem necessariamente que o contrato com o prestador fosse firmado diretamente com a SESAB. Desfazer os contratos existentes e fazer a contratualização por módulos de financiamento, oferecendo um modelo de contrato para que o município faça o contrato com o prestador. Em contrapartida, teríamos o compromisso de que parte desses leitos compusessem o nosso sistema de regulação. O repasse para o município aconteceria em conformidade com o critério de repasse por área, por módulos. Estipularíamos as metas para cada módulo, isso seria repassado para cada município e caberia a cada município estabelecer a forma como os recursos seriam repassados aos prestadores.

 

OPGH – O que o PAH propõe na esfera do aprimoramento da gestão das unidades hospitalares que prestam serviços para o SUS no Estado?

M.A. O plano prevê a adesão por compromissos. Nos hospitais sob gestão dos municípios é contratualizar e manter os eixos de gestão, de integração com a rede, o que é fundamental. Os hospitais precisam sair dos seus muros, se integrar entre si e com os demais pontos de atenção. Isso tudo será conduzido, fomentado por termos de compromisso no momento da adesão. Seriam os requisitos para esse financiamento.

 

OPGH – O PAH indica a necessidade de mudanças substantivas na oferta e no funcionamento da atenção hospitalar prestada pelo SUS no Estado, envolvendo por exemplo o fechamento de leitos em algumas especialidades e em determinadas macrorregiões, assim como a abertura de leitos e serviços em outras macrorregiões.  Mudanças desta natureza são de difícil execução, envolvendo não só recursos para investimento como negociações delicadas com prestadores, profissionais e a população. Como a SESAB pretende viabilizar estas ações?

M.A.: Não é nosso objetivo fechar hospitais. Há excesso de leitos em algumas especialidades, mas não há um objetivo explícito de fechar leitos ou estabelecimentos. Talvez um desincentivo para a manutenção desses leitos em excesso. Não vamos fechar, mas não vamos mais incentivar.

 

OPGH – O plano reconhece a carência de profissionais de saúde de algumas especialidades em certas macrorregiões. Como a SESAB pretende equacionar este problema? 

M.A. Dificílimo equacionar. À medida que o ente estadual implanta serviços e financia de uma forma mais próxima da realidade, há uma tendência de desconcentrar esses especialistas dos grandes polos. Tornar o emprego mais atraente. Mesmo assim, não é fácil.

 

OPGH – O processo de implantação do PAH se vê agora diante do cenário de mudança de governo no próximo ano. O que pode ser feito com vistas a minimizar os riscos de que esta iniciativa sofra de descontinuidade administrativa?

M.A. O que nós temos certeza é que esse ano ainda não conseguiremos concluir este processo, mas nossa ideia é deixá-lo todo pronto, normatizado e reconhecido pelos entes, ganhe quem ganhar. Está dentro do plano de governo atual dar continuidade ao plano, ele está dentro do Plano Regional Integrado – PRI. Está reconhecido e trabalhado com o COSEMS, com os gestores hospitalares que vão continuar. Essa é a nossa aposta para que o plano não fique na gaveta. À medida que ele é reconhecido como uma coisa boa, a gente sabe que vai ser cobrado. Ele vai estar pronto, basta implementá-lo.

O grande trunfo desse processo é o estabelecimento dessa nova governança para o SUS da Bahia. Essa maior articulação do COSEMS com a SESAB é uma conquista estratégica para assegurar a continuidade desse processo.