Data da publicação: 11 de fevereiro de 2022

Autores: Francisco Braga, Leila Salim, Raquel Torres e Simone Ferreira (OPGH/Fiocruz)

 

No final do ano passado, o OPGH publicou a primeira parte da entrevista com Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo. Naquele momento, discutimos centralmente a criação da Fundação iNova, parte do plano de modernização hospitalar implementado no estado. Agora, nesta segunda parte da entrevista, abordamos outras medidas adotadas pela SESA ao longo desta gestão no âmbito da gestão hospitalar. Foram implementadas mudanças nas relações e contratos do estado com Organizações Sociais, entidades filantrópicas e o setor privado, além da adoção de novos mecanismos de avaliação e regulação, que se inserem no marco de adoção de um modelo de mosaico na gestão hospitalar. Foram introduzidos também novos dispositivos e ferramentas voltadas relacionadas à gestão da clínica. Aqui, você conhece detalhes dessas iniciativas e também seus primeiros resultados. 

 

O plano de modernização hospitalar da Sesa/ES estabeleceu novas relações com as Organizações Sociais (OSs), interrompendo um processo que previa a migração da gestão de todos os hospitais do estado para essas entidades e apostando na criação da Fundação iNOVa. Há planos de passar as unidades atualmente geridas por OSs para a Fundação?

Nós fomos contra a política, iniciada na gestão anterior, de migrar todos os hospitais para Organizações Sociais. Entendemos que era preciso manter preservados alguns contratos com as OSs, e, ao mesmo tempo, criar a figura da Fundação para ser um novo ator nesse contexto. Mas a perspectiva não é passar todas as unidades atualmente geridas por OSs para a Fundação, e sim que permaneçamos tendo OSs. No entanto, reconhecemos que o modelo dessas organizações caminha para a falência no país, caso sejam preservados o atual escopo legal e a atual percepção dos órgãos de controle sobre o modelo. Há um dilema objetivo e concreto nesse modelo: as OSs são organizações econômicas, e toda organização econômica, mesmo aquela de finalidade não lucrativa, precisa trabalhar com superávit. O dilema do superávit – e de como ele é aplicado  na sua operação e compartilhado com a central – é um tema que não está pacificado no país. 

O que as OSs fazem para se apropriar de algum grau de superávit? Atuam, por exemplo, com um diretor técnico que é, também, dono da empresa que presta serviço ao hospital… Elas têm toda uma rota de contabilidade, uma espécie de engenharia montada, que faz com que uma rede de relações de empresas e de pessoas jurídicas de direito privado participantes de um arranjo próprio daquela organização sejam contratadas e viabilizem aquele contrato. Nós consideramos isso temerário e inadequado. Caso apliquemos regras de compliance, de conformidade, vamos identificar que praticamente todos os contratos de OSs no país contam com algum grau de irregularidade ou desconformidade. Por isso, propusemos uma nova lei para que, entre tantas questões, possamos reconhecer a figura do Centro de Custos Compartilhados dentro de uma margem de 2 a 4% do contrato, em que se possa utilizar esse valor para operação junto à sua central.

Isso permite que, do ponto de vista normativo e legal, reconheçamos que há necessidade de um superávit na operação do contrato para a organização se sustentar. Existem OSs muito  pequenas e também as de médio e de grande porte. As de grande porte, que no país gerem muitos hospitais, enfrentam um contexto de alto risco institucional, financeiro e judicial. Os passivos que elas acumulam paulatinamente na administração fazem com que a atividade seja temerária. O modelo de OS precisa se modernizar — ou irá falir. Por isso trabalhamos na perspectiva de modernizá-lo no estado. 

 

Em que consiste esse novo marco legal?

No fim de dezembro [de 2021], foi aprovada a nova lei estadual sobre os contratos com as Organizações Sociais no estado do Espírito Santo. Esse novo marco traz justamente essas modernizações que, na minha avaliação, são exigidas pela natureza do modelo.  Entendendo que os contratos de gestão de hospitais feitos pelas OSs com estados, segundo um modelo jurídico difundido por todo o país, são de alto risco, buscamos pacificar o reconhecimento do componente de custo operacional desses contratos. 

Enquanto não se reconhecer que qualquer organização - seja ou não seja filantrópica, seja ou não seja de finalidade econômica - precisa ter um superávit para a operação e apropriação por parte de seu comando central, vamos viver coexistindo com maquiagens contábeis. O mesmo se dá em relação à Fundação: ela precisa ter o reconhecimento de que, em cada contrato, terá uma participação de recursos que vão para a sustentação da sua sede, para poder ter um saldo financeiro que possa suportar riscos futuros, um investimento em modernização tecnológica, suportar riscos jurídicos daquele contrato etc. Esse assunto, então, não é somente relacionado às OSs, mas sim à sustentabilidade de qualquer modelo vinculado à terceirização da gestão de serviços de competência do Estado. 

Também nesse marco das OSs instituímos algo que pretendemos estender ao modelo das fundações: nós eliminamos a glosa  [nota do OPGH: glosas são impugnações de despesa, que podem significar a rejeição total ou parcial de recursos financeiros do SUS utilizados de forma irregular ou cobrados indevidamente por prestadores de serviço] em valores do contrato. Antes, por exemplo, precificava-se um hospital com X metas por mês, por R$ 10 milhões por mês; caso as metas não fossem cumpridas, fazia-se uma glosa de R$ 3 milhões no contrato. Só que o contrato foi precificado para atender o povo, as pessoas, para pagar salários de trabalhadores, para cumprir seus compromissos com seus fornecedores…e como posso penalizar o contrato através de glosas, o que inviabiliza a própria execução do contrato? Então, adotamos a medida de penalizar e vincular as multas ao CPF do gestor daquele contrato, e a central paga com seu dinheiro a multa dos contratos. Além disso, estabelecemos limites a essas multas. 

O risco jurídico do modelo anterior desses contratos era muito grande para essas organizações - o que tem levado muitas OSs no Brasil inteiro a abandonar o modelo. Por exemplo, a OS de Santa Catarina, que era uma organização muito reconhecida e bem avaliada no país inteiro, definiu pela saída do modelo de contrato de gestão de hospitais. A própria Pró-Saúde, que foi envolvida em muitos problemas em todo o Brasil, está reduzindo muito sua participação nesses contratos de gestão dos hospitais, assumindo contratos de menor risco e migrando para um mundo da ciência, tecnologia e inovação, apostando em Instituições Científicas e Tecnológicas. 

 

O que motivou essa decisão pela manutenção dos contratos com as OSs? A operação das OSs sob estas bases não significa um maior dispêndio de recursos na prestação desses serviços? 

Existe uma questão pragmática: a transição para um novo modelo de governança não ocorre de maneira automática em um único ano para toda a rede hospitalar, então não seria factível ou responsável suspender todos os contratos com as OS e a Fundação assumir todos aqueles contratos imediatamente. E tampouco seria sustentável assumir pela gestão pública direta, porque haveria um impacto muito grande na quantidade de contratos temporários com pessoal (que têm um custo maior na gestão pública direta do que na gestão das OS), o que levaria a um aumento do custo dessas unidades hospitalares de maneira muito abrupta, impactando o orçamento e o equilíbrio fiscal do estado. Nós não tínhamos condições de fazer uma virada de mesa radical nesse sentido. Isso é uma questão pragmática, de operacionalização e a opção por não fazer grandes migrações simultâneas, que poderiam comprometer, inclusive, a boa avaliação do modelo. 

E há uma outra questão que é uma decisão política: a escolha por ter, na rede hospitalar, uma composição de mosaico de modelos de governança, heterogênea, de modo que nenhum modelo desses pudesse assumir um tamanho ou dimensão, se transformando em um pólo de poder político em contraposição à gestão pública direta, ao Estado, representado pela Secretaria Estadual de Saúde. Estados que têm, por exemplo, uma gestão hospitalar hegemonicamente executada por entidades filantrópicas coexistem com um problema político em que esse bloco de entidades acaba se constituindo em um pólo de disputas com parlamento, com prefeitos… elas participam, em resumo, da disputa política pelas decisões das secretarias de saúde com uma força muito grande, o que faz, muitas vezes, a gestão pública direta refém desses movimentos. Também os estados que têm a dependência praticamente total do modelo das OSs passam a ter o mesmo tipo de problema. 

Por isso, entendemos que o Estado nunca pode perder a prerrogativa de ser o comando da política pública. Do ponto de vista da correlação de forças, o Estado precisa ter sempre uma autonomia, uma independência em relação a esses outros segmentos. Por isso, tampouco seria adequado criar uma Fundação que fosse maior em alguns momentos e situações, que o próprio orçamento da Sesa. É por isso que não vamos migrar todos os hospitais para a Fundação (que irá concentrar a maioria dos contratos), e vamos preservar alguns hospitais, inclusive, na gestão pública direta, além de preservar alguns contratos nas OSs. O entendimento é o de que o Estado, como tal, não pode perder uma competência mínima na gestão desses serviços. 

Foram essas as questões que nos levaram a decidir pela manutenção de parte dos contratos com OSs, entendendo ainda que o modelo pode ser, em alguns momentos, uma opção para gestão sem nenhum tipo de preconceito institucional - sempre lembrando que, em hipótese alguma, deve ser um modelo hegemônico, ou a opção preferencial do poder público. Entendemos que a gestão pública estatal deve ser feita pela Fundação não dependente ou pela gestão pública direta como primeira opção. 

 

Além das OSs e da administração direta, há algum outro  arranjo jurídico-administrativo pelo qual os hospitais públicos estaduais são geridos? 

Há a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) no Hospital das Clínicas do estado. Hoje, a contratualização com EBSERH, por um equívoco histórico de entendimento do setor e da própria procuradoria, é tratada como um convênio com entidade filantrópica. Estamos modificando isso na nova contratualização. 

Temos, ainda, um outro modelo que é muito desorganizado: a compra direta de leitos da rede privada. Quando iniciamos a gestão, em 2019, os dados indicavam que em 2018 o estado comprou, por dia, uma média de 80 a 90 leitos da rede privada, utilizando um modelo de credenciamento. Naquele ano, cerca de 40% dos pacientes que aguardavam leitos de enfermaria e UTI na rede pré-hospitalar esperavam mais de 24 horas. Hoje, 85% dos pacientes são regulados em até 24 horas pelo estado. Isso quer dizer que o processo de modernização da regulação do estado permitiu quase extinguirmos a compra dos leitos da rede privada da forma como acontecia anteriormente. 

Hoje, compramos leitos privados para pacientes de longa permanência, de transição, porque transformamos nossos hospitais de longa permanência em unidades de média complexidade para atender a pacientes de covid-19. Depois, eles acabaram se estruturando como hospitais com cirurgia geral, ortopedia e trauma. Equipamos esses hospitais com um determinado tipo de estrutura, então não faria sentido, agora, devolvê-los ao perfil anterior. Por isso, agora estamos analisando caminhos para que, no ano que vem, possamos voltar a não precisar comprar esses leitos da rede privada. Ou, se comprarmos, que o façamos através de um modelo diferente de compra. 

Além desses leitos de transição, hoje também compramos leitos psiquiátricos. Em 2018, a Secretária de Saúde encerrou a compra de serviços nas comunidades terapêuticas, por uma série de razões - políticas, ideológicas, sanitárias -, e passou a comprar leitos de clínicas psiquiátricas. Nesse processo, algumas comunidades terapêuticas se tornaram clínicas psiquiátricas. Foi criado um acesso para a judicialização e também um acesso administrativo para que pacientes do SUS fossem internados em clínicas privadas de atendimento psiquiátrico, nas quais permanecem por até 90 dias. O custo disso representa, hoje, quase 60 milhões ao ano. No entanto, o processo está desenhado a partir de um modelo de credenciamento que é, também, obsoleto. 

Por isso, revisamos o processo para comprar esses leitos através de outro modelo. Esses hospitais serão transformados em complementares ao SUS e vão atuar como rede privada dentro do Sistema, mas com leitos exclusivos para o SUS. Nossa expectativa é que, com isso, possamos sair dos atuais gastos de 60 milhões para, no máximo, 20 milhões por ano. Pretendemos, inclusive, reverter parte desse dinheiro excedente em cofinanciamento para ampliação da rede de atenção psicossocial do estado – para Centros de Atenção Psicossocial, residências terapêuticas, ambulatórios de saúde mental e também para a abertura de leitos de psiquiatria nos hospitais gerais.

 

A opção pelo modelo de mosaico na gestão hospitalar - comportando a Fundação iNOVA, as Os, os hospitais próprios sob a administração pública direta, a contratação de hospitais filantrópicos e a compra direta de leitos junto a prestadores privados - é motivada principalmente por essa necessidade de equilíbrio na correlação de forças entre os diferentes atores? Ou esse modelo é considerado pela Sesa também superior do ponto de vista da racionalidade administrativa? Em que medida este mosaico de situações favorece a oferta e a gestão hospitalar estadual? 

Um Estado forte é um Estado que consegue dominar diversos modelos, ter um grau de flexibilidade e que aprofunde do ponto de vista normativo, organizacional, do comando político da política pública… Nesse sentido, estamos trabalhando agora com a construção de uma subsecretaria que vai precisar ter um perfil de competências que dê conta das dimensões normativas, jurídicas, administrativas, da garantia do acesso tanto na contratualização com a filantropia, com as OSs, com as empresas públicas - a EBSERH no Hospital das Clínicas - e com a Fundação iNOVA. O Estado precisa ser forte e dominar todos os seus marcos jurídicos. 

Outra questão importante do mosaico é que permite que haja uma relação de competição entre os modelos. Fundação iNOVA, OSs e os hospitais filantrópicos estabelecem entre si uma lógica de competição e comparação. Isso permite colocar na mesa com todos esses atores as experiências que têm melhores desempenhos assistenciais e de governança em cada modelo. 

A gestão pública direta do Espírito Santo tem tido os melhores avanços na mudança do modelo de atenção e de organização da qualidade do cuidado em comparação com a Fundação, com as OSs e com a filantropia. A implantação da medicina hospitalar na gestão pública direta com o funcionamento dos Núcleos Internos de Regulação (NIRs) e os escritórios de gestão de alta e, agora, a implantação da avaliação com o DRG [nota do OPGH: sistema Diagnosis Related Groups, desenvolvido originalmente nos Estados Unidos. Confira aqui artigos sobre o sistema e suas aplicações] nas unidades têm colocado as unidades públicas geridas pela gestão direta com um desempenho destacado em comparação com os outros modelos. Mas isso não é algo exclusivo da gestão pública direta, são políticas que tiveram sua implantação iniciada na gestão pública direta e que agora serão replicadas para a Fundação, a filantropia e as OSs. 

Por outro lado, o modelo das OSs nos permitiu amadurecer muito um controle contábil a partir da implantação de um sistema que tem o controle de todas as notas fiscais das OSs e que nos dá um controle  da execução financeira desses contratos muito mais fino - o que é algo que entendemos que deve ser replicado no modelo da Fundação. Esses diferentes modelos trazem, cada um, experiências que podem ser apropriadas pelo Estado no seu conjunto, criando melhores práticas a partir daí. 

 

O senhor citou novas experiências de avaliação e regulação. Quais os principais resultados do plano de modernização hospitalar nessa área? 

Os Núcleos Internos de Regulação não funcionavam 24 horas por dia e nem tinham equipes completas. Então, decidimos implantar os NIRs de cada hospital num modelo proposto em manual pelo Ministério da Saúde e que permitiu um grau maior de governança da própria unidade hospitalar – as unidades passaram a cuidar do acompanhamento do tempo médio de permanência, de todos os indicadores de produção e resultados. 

Nos últimos meses de 2021, autorizamos que os filantrópicos captem até R$5 milhões por unidade hospitalar com a bancada federal para implantar o NIR e o Escritório de Gestão de Altas. Estamos montando um grande data web house, no qual vamos concentrar os dados das internações de toda a rede hospitalar. Dessa forma, tanto o monitoramento quanto a avaliação  poderão ser feitos a distância. E, para 2022, queremos elaborar painéis de transparência dos indicadores de desempenho e produção nos hospitais. Nossa perspectiva é que, no segundo quadrimestre, teremos um grau de amadurecimento importante sobre esses painéis e essas interoperabilidades.  Na rede própria, esse processo já avançou muito. Até o fim deste ano, provavelmente teremos uma gestão visual do desempenho dos hospitais, o que também está no escopo da modernização. 

Um dos aspectos do plano de modernização hospitalar é a nova contratualização com a filantropia. [Nota do OPGH/atualização: foi aprovada em maio a portaria que institui a Política Estadual de Contratualização da Participação Complementar ao Sistema Único de Saúde no Espírito Santo. Acesse aqui.] Para isso, estamos implantando o DRG e outras medidas para avaliar e dimensionar o desempenho hospitalar dos filantrópicos, e assim poder tanto precificar quanto pagar pelo seu desempenho. Isso porque a modalidade de pagamento por produção é obsoleta e induz a contratos inexplicáveis. Há, por exemplo, hospitais filantrópicos com incentivos de qualidade de R$ 900 mil por mês ‒ mais de R$ 10 milhões por ano ‒ e que reclamam afirmando que a tabela do SUS é subfinanciada, que o preço das diárias dos leitos é ruim… Sem levar em conta que recebem esses incentivos mensais sem, praticamente, contrapartida alguma. 

No modelo da nova contratualização, estamos definindo um novo valor de diária e de precificação pelo perfil assistencial das unidades hospitalares. Esses preços irão variar de acordo com as condições específicas: dependerá da quantidade de leitos de enfermaria, de UTI, se é uma UTI coronariana, se é uma UTI Tipo 2 etc. Levando tudo isso em consideração, se estabelecerá um preço por diária. Iremos pagar 90% da ocupação praticando a orçamentação global, que estabelece 70% do valor como fixos e 30% variáveis, a depender do cumprimento de sete dimensões na escala de avaliação de valor do hospital. O sistema DRG permite que se faça uma revisão de processo de trabalho e que se identifique todos os problemas administrativos, de fluxos assistenciais e qualidade da propedêutica que possam estar impedido que os pacientes com aquela codificação tenham um tempo de permanência de bom desempenho. Nossa perspectiva não é a de que o pagamento ocorra somente através do DRG, mas de usá-lo como um dos componentes que nos permitirão monitorar e avaliar a qualidade da assistência prestada nos hospitais do estado, nos  filantrópicos e na própria Fundação. 

 

E quanto à implantação da medicina hospitalar? Como está se desenvolvendo esse processo e em quantos hospitais já ocorreu?

Nós mantivemos a implementação do plano de modernização durante a pandemia e, em 2021, ampliamos as ações, com a estruturação dos escritórios de gestão de alta (EGAs) nos hospitais, além da implantação da medicina hospitalar, um modelo relativamente recente. Médicos e enfermeiros hospitalistas são duas especialidades assistenciais novas no Brasil – embora mais difundidas em países como Estados Unidos, Canadá e na Europa. Nós decidimos criar uma formação em serviço robusta nessa área, e incorporar a medicina hospitalar, em um processo de mudança no modelo de atenção hospitalar. Nossos profissionais hospitalistas são clínicos com qualidade assistencial muito resolutiva. Eles fazem o comanejo do paciente, a conciliação medicamentosa, acompanham a gestão do cuidado transversal do paciente nos hospitais e promovem o cuidado longitudinal do paciente. 

Com isso, buscamos modificar a composição das escalas das equipes, que é tradicionalmente vertical. Nesse modelo vertical, obsoleto, diariamente se modificam as escalas e o mesmo paciente é visto, na mesma semana, por vários médicos diferentes. Começamos a incorporar e induzir a horizontalidade no cuidado e a responsabilidade dos times, e passamos a ter também resultados muito interessantes nos leitos cuidados pela medicina hospitalar. Mesmo nos outros , tivemos bons resultados com a implementação do NIR e do EGA. Outro ponto importante foi a reestruturação do programa de residências em saúde. Saímos de 17 vagas de residência em 2018 e vamos chegar, no próximo ano, a mais de 600 vagas. 

A medicina hospitalar já está consolidada em quatro hospitais e abrimos em mais três. Ou seja, temos neste momento os sete principais hospitais da gestão estadual com esse modelo em implementação. 

 

O senhor comentou que, por um equívoco histórico de entendimento do setor e da procuradoria, a contratualização com a EBSERH é tratada como convênio com entidade filantrópica - e que se está trabalhando para modificar isso.  Que papel a SESA desempenha no contrato com o Hospital das Clínicas e a EBSERH? Como avalia este arranjo e quais mudanças estão previstas para a nova contratualização?  

A EBSERH é o “primo rico” de toda a gestão pública, talvez não apenas do Brasil mas também da América Latina. São os hospitais mais caros do país, que tem um subsídio - porque é uma empresa dependente do governo federal -, então há um financiamento que cobre a folha de pagamento deles, e, além disso, têm uma contratualização adicional com estados e municípios. Então, esse modelo da EBSERH é extremamente caro e foi tratado no estado, ao longo do tempo, como se fosse uma entidade filantrópica. Nós temos o seguinte entendimento na Sesa: a relação com as entidades filantrópicas e também com a EBSERH deve se dar por prestação de serviços por meio de contratos - com pagamento por serviços prestados. Quando tratar-se da relação do estado com as entidades filantrópicas ou com a EBSERH visando a um aporte adicional de recursos financeiros, se for uma cooperação em torno de um tema, ou um estímulo a um desenvolvimento de uma competência daquele estabelecimento, poderia se adotar um convênio de fomento como instrumento de repasse específico para finalidades pontuais, de interesse comum entre o estado e essas entidades.

Então, estamos em um debate muito aberto com a Procuradoria Geral do Estado para convencê-la de que, na relação com a EBSERH e as entidades filantrópicas, seja adotado o contrato como instrumento jurídico de relação para compra de serviços. E que adotemos o convênio para situações específicas de repasses de incentivos. A ideia é que tenhamos uma clareza maior de como se dá a relação do estado com essas entidades. Temos uma proposta, a ser discutida com a PGE, que busca redefinir toda a regra de contratualização com as filantrópicas e a EBSERH. Ela indica sete dimensões que serão incorporadas no contrato. Existe um score para a pontuação que é adotado como critério de avaliação. A relação do hospital com a rede e com a regulação passa a ser avaliada dentro do contrato e essas sete dimensões passam a ser adotadas na relação com os hospitais. 

Em linhas gerais, nossa preocupação neste momento é mudar o conteúdo da relação. A Procuradoria tem esse entendimento da relação com filantrópicos por meio de convênio, e nós não vamos abrir uma guerra institucional com a Procuradoria caso eles avaliem que precisa ser convênio e não contrato, mas aceitar todos os termos daquilo que consideramos necessário e adequado para a relação com essas entidades. Mas, como Sesa, nosso entendimento, baseado em avaliação jurídica, é o de que o contrato é o melhor instrumento de relação. 

 

Retomando a questão da compra de leitos da rede privada: o senhor mencionou que, hoje, existe a compra de leitos privados para pacientes de longa permanência e transição porque os hospitais próprios foram reestruturados e não faria sentido devolvê-los ao perfil anterior. O que mudou nos hospitais próprios nesse processo e como isso alterou a demanda na compra de leitos privados? 

Um exemplo é o Hospital Estadual de Vila Velha. Era um hospital com, aproximadamente, 100 leitos, de muito baixa complexidade e que fazia, basicamente, cirurgia de mão, cirurgias ortopédicas. Recentemente, esse hospital foi constituído de uma sala vermelha, de emergência, virou hospital de referência para o Samu, com cinco salas cirúrgicas, 9 leitos de isolamento, uma unidade que agora tem um corpo clínico com intensivistas, cirurgiões gerais e que teve uma redefinição de seu perfil. E aí passamos a comprar leitos de transição e longa permanência de alguns hospitais privados, que prestam serviços de altíssima qualidade, e é uma relação custo-benefício muito vantajosa para o estado neste momento. Nós pagamos R$715 a diária por um leito com atendimento muito qualificado e que tem tirado dos nossos hospitais de maior complexidade os pacientes que acabariam ocupando um recurso essencial para uma cirurgia de maior complexidade e para pacientes mais críticos. 

O estado terá um resultado final das decisões que tomamos no primeiro ano que governo e que sobrepõem às decisões tomadas diante da pandemia, que nos permitirá alcançar, possivelmente, com a inauguração dos hospitais que estão em construção, uma das melhores relações leito público/paciente do país, que talvez possa ser comparada às melhores taxas dos países europeus. Vamos inaugurar, ainda, um hospital de 430 leitos novos em Cariacica; um novo hospital em São Mateus com mais 230 leitos; um em Colatina com mais 240 leitos; o Hospital de Baixo Guandu, que hoje tem 47 leitos, vai para 70. Existe uma agenda muito grande de expansão dos hospitais do estado que vai permitir que, no futuro, alguns dos hospitais que hoje fazem média complexidade possam voltar a ser hospitais de retaguarda ou especializados em infectologia ou algumas áreas mais. Temos consciência de que existe um perfil da rede hospitalar hoje e haverá um outro perfil da rede hospitalar daqui a três anos quando estivermos inaugurando a totalidade desses hospitais. Isso permitirá que a gente prescinda da compra desses serviços na rede privada. 

A rede privada que hoje depende dessas compras do estado como um cliente no mercado deve se programar para que, no futuro, não exista mais essa relação de compras de serviços. E isso já reduziu muito no estado, porque nós tínhamos 630 leitos de UTIs em toda a rede pública e contratualizada com o estado antes da pandemia, e hoje estamos operando a rede com 1238 leitos permanentes. Nós praticamente duplicamos a rede do SUS  e paramos de comprar leitos de UTI da rede privada para atender pacientes clínicos, como comprávamos e dependíamos no período anterior. 

A rede hospitalar a ser inaugurada vai, de fato, permitir um novo desenho no futuro. Neste momento, estamos fazendo um grande termo de referência para a contratação de empresas que vão prestar serviço de Melhor em Casa [nota do OPGH: Programa de atenção domiciliar do MS] aqui no estado. Pretendemos abrir, pelo menos, oito equipes de Melhor em Casa imediatamente até o meio de março deste ano em todo o estado do Espírito Santo, que podem chegar a doze equipes até o final do ano, para avançar no cuidado domiciliar de pacientes diagnosticados com os perfis indicados para esse tipo de tratamento.

Além disso, a intenção é trabalhar mais com a perspectiva do cuidado apoiado pelo núcleo familiar desses pacientes. Até porque caminhamos para um fenômeno inevitável, que é, com o aumento da população idosa, o aumento das demandas de pacientes com demência, com doenças crônicas, de condições que vão exigir uma participação de cuidado domiciliar apoiado, que é muito mais adequado, humanizado e que, também, tem uma relação de custo-benefício muito boa para o estado. Se podemos ter um modelo de atenção domiciliar complementar, para a transição de uma hospitalização de um paciente que exige um recurso tecnológico maior e, ainda, ter uma vantagem econômico-financeira, isso quer dizer que conseguiremos dedicar recursos que gastaria em uma atenção totalmente centrada no hospital para garantir mais acesso a pacientes pela estrutura da saúde pública. Essa aposta na atenção domiciliar é algo que estamos querendo consolidar neste período. Passamos uns três anos apostando na relação com os municípios para a atenção domiciliar, mas ela não surtiu o efeito esperado, e por isso o estado decidiu assumir diretamente a ampliação da atenção domiciliar do paciente AB2 e AB3 com uma interface importante com a atenção primária.

 

Outro ponto é a compra de leitos psiquiátricos, que foi um desdobramento do encerramento da compra de serviços nas comunidades terapêuticas. Essa iniciativa se coaduna com os princípios e orientações da reforma psiquiátrica no país?  

A partir do encerramento da compra de leitos para internações em comunidades terapêuticas, migrou-se para um outro modelo que também não traz muito de avanço no que diz respeito ao cuidado continuado e toda complexidade que é o manejo do paciente de saúde mental. Nós saímos da compra dos serviços das comunidades terapêuticas para a compra de internação clínica em clínicas que não tem qualquer relação com a rede, na ausência de uma política de expansão da rede de saúde mental e atenção psicossocial no estado, com frágeis interfaces com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Aprovamos na primeira semana de janeiro de 2022  minuta do novo modelo de relação com essas entidades: vamos parar de comprar leitos das clínicas e aproximar o que, hoje, é tratado como leito de clínica psiquiátrica com a concepção de leitos de saúde mental de internação hospitalar dentro da política nacional com essas entidades privadas. A questão é que não temos uma rede robusta de saúde mental nas entidades filantrópicas nem na rede estatal. Neste momento, temos 315 pacientes na fila de leitos de internação psiquiátrica na regulação do estado. Chegamos a ter 450. E para atender essa demanda imediata não temos uma solução estatal robusta para conseguir substituir de um dia para o outro esse modelo. 

Precisamos fazer com que esse modelo das clínicas migre para um modelo muito mais voltado para a lógica da atenção hospitalar - e não da clínica psiquiátrica - e que ele trabalhe com a lógica de tempo de permanência mais reduzidos, em torno de 21 a 30 dias como tempo médio para esses pacientes, e estamos incluindo no termo de referência que esses serviços hospitalares de atendimento a pacientes psiquiátricos vão precisar ter um período de cuidado continuado de transição na alta desses pacientes, que incluirá um conjunto de consultas ambulatoriais com assistentes sociais, psicólogos/as e psiquiatras. A transição concreta para o cuidado na atenção básica nos serviços municipais prevê esse período de transição de até dois meses a partir da alta da internação. Então, esses hospitais passarão a ter a obrigatoriedade de um escritório de gestão de altas e também de um acompanhamento ambulatorial de transição dos pacientes. A ideia é que tenhamos uma economia… hoje, gastamos R$ 31 milhões de reais por ano com esses leitos. A ideia é que gastemos menos de R$ 20 milhões/ano e que a diferença de saldo orçamentário seja aplicada na indução dos municípios para aumentar a oferta de CAPS e ambulatórios de atenção psicossocial para esse perfil de paciente. Para que os municípios tenham, tanto na atenção básica com os NASFs, quanto nos demais componentes da RASP, condições de receber esse paciente. 

A nossa perspectiva, como mencionei, de ampliação da rede hospitalar para os próximos três anos, vai permitir que esse seja um perfil que o estado consiga absorver com mais qualidade inclusive dentro dos nossos próprios hospitais gerais. Hoje, com a sobreposição da pandemia e toda a pressão, não tínhamos condição de aplicar energia institucional à revisão do perfil assistencial dos hospitais, que estão sendo consumidos pela carga de doenças já conhecidas e ainda mais as necessidades postas pela pandemia. 

 

Neste ano, haverá eleições para o governo estadual. Quais são os principais desafios que ainda há por enfrentar?

Após a aprovação do novo marco da lei das OSs e da publicação do novo modelo de  contratualização da rede no estado, em especial da filantropia, teremos, de acordo com nosso planejamento, em fevereiro de 2022 todos os hospitais estratégicos e estruturantes filantrópicos do estado já contratados no novo modelo. Estamos com uma rotina bem intensa para poder aprovar o novo regulamento da contratualização. E, ainda, no primeiro quadrimestre do ano que vem, já ter migrado as OSs para a nova legislação.  

O outro desafio é migrar hospitais para Fundação no último ano de governo. Nossa expectativa é de ter pelo menos cinco hospitais na Fundação no próximo período, o que é um desafio muito grande. Como não queremos migrar no período eleitoral, teríamos, até julho do ano que vem, ao menos esses cinco na Fundação. A migração de um hospital próprio para a Fundação é simplificada, se comparada à migração de um hospital gerido por OS: entre 40 e 50% da mão de obra do hospital é preservada. Já estamos preparando os atuais diretores para continuarem na Fundação. Já no caso de migração de hospitais geridos por OS para a Fundação, é necessária uma mudança completa. 

 

Algum comentário final?

É importante colocar toda essa discussão no contexto de que a gestão estadual participa de uma corrente política que entende que o Estado precisa ser forte, ter alto grau de eficiência na capacidade de execução das políticas públicas e que a saúde precisa ser tratada sempre como direito e não mercadoria, ser assumida dessa forma pelo poder público diante dessa complexidade que é o arranjo interfederativo. É importante que toda energia gasta nesse momento consiga consolidar melhores apropriações daquilo que consideramos como boas práticas, o que faz parte da disputa pela hegemonia. Outras concepções, como as neoliberais, que tratam de reduzir o tamanho do estado e o seu peso no protagonismo das políticas, apontam para uma perspectiva de simplificar todo esse processo e adotar a política de mínimo esforço, o que não é o nosso caso.