O nível de cuidado que responde pela média e alta complexidades do SUS está em foco no Governo Federal. Com uma oferta que não tem dado conta da demanda, gestores e trabalhadores da saúde têm se reunido para discutir caminhos e definir prioridades.

 

Por Clarisse Castro Cavalcante

23/06/2023

 

A atenção especializada no SUS é um cenário complexo. Sem política definida a nível nacional, usuários sentem na pele os inúmeros problemas que afetam ações e serviços de média e alta complexidade no Brasil. Já se sabe hoje que são mais de 1 milhão de cirurgias eletivas nas filas de espera, de acordo com o último levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, que busca fornecer dados ao Programa Nacional de Redução de Filas, lançado em janeiro pelo Governo Federal. A priori, serão repassados para estados e municípios 600 milhões de reais, que deverão financiar os procedimentos cirúrgicos e também a realização de consultas e exames complementares por especialistas. A primeira das parcelas já foi liberada, cerca de 200 milhões de reais.

 

A apresentação de um número atualizado de procedimentos em espera já é resultado de um esforço coletivo - da União, dos estados e dos municípios - para resolver um dos principais sintomas desse adoecimento: a falta de clareza e de informações integradas sobre o cenário. No início do levantamento, o atual secretário nacional de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Helvécio Magalhães, declarou que o SUS funciona “às cegas”, no que se refere a um acompanhamento nacional e sistemático dos procedimentos acumulados, com transparência e em tempo real. Em entrevista concedida a nós, do OGPH, a vice-presidente da Abrasco e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Marília Louvison, fala em “defasagem”, quando avalia o principal sistema de acompanhamento e regulação desse tipo de procedimento hoje no Brasil, o SISREG.

 

Mas além das cirurgias eletivas, do que mais estamos falando quando a pauta é atenção especializada? E o que dizem as pessoas que estão trabalhando para tornar esse nível de atenção mais efetivo?

 

O lugar depois da Unidade Básica de Saúde

 

Existem pelo menos duas maneiras já bastante popularizadas de classificar os níveis de atenção, ou de cuidado, promovidos pelo Sistema Único de Saúde - SUS. Alguns especialistas costumam falar em atenção primária, secundária e terciária; de baixa, média e alta complexidade; ou simplesmente de atenção básica e atenção especializada, que contempla os níveis secundário e terciário de cuidado. O modo mais simples de ilustrar essa informação, contudo, é aquele que leva em conta a experiência das pessoas usuárias e trabalhadoras da saúde: a atenção especializada é o lugar para onde os profissionais de saúde encaminham as pessoas depois que elas saem da Unidade Básica de Saúde (UBS), ou quando elas sozinhas, vivendo alguma situação de risco ou agudização de quadro, procuram uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou solicitam atendimento pelo o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). 

 

Isso, claro, quando estamos falando de saúde pública. Porque quando a pessoa é beneficiária de algum plano privado de assistência, ela foge totalmente a qualquer tipo de lógica integrada de atenção. Discar um número e marcar uma consulta com um especialista, por exemplo um ortopedista, por autopercepção de uma dor, pode até acelerar o atendimento, mas quase sempre resulta em uma solução muito pontual, que trata a consequência e não a causa da maioria dos problemas de saúde.

 

Na teoria, esse é o caminho ideal, que vem sendo aperfeiçoado pelo menos desde 1990, quando o SUS é regulamentado pela Lei 8080: o usuário entrar pela UBS antes mesmo de apresentar a manifestação crítica de alguma doença. E sair para outros serviços apenas de maneira provisória, para realizar procedimentos que são prestados por especialistas, em serviços e estabelecimentos como Policlínicas e Hospitais, por encaminhamento realizado após avaliação da atenção primária. Uma vez realizado o procedimento, o usuário deverá seguir o acompanhamento na UBS onde tudo começou. A esses movimentos dá-se o nome de referência e contrarreferência, organizados e planejados por gestores do SUS. 

 

Chioro e Solla explicam que é preciso entender a atenção especializada como um território estratégico de intervenção do sistema de saúde. Mas para que isso seja possível, é necessário reconhecer e colocar em prática os mecanismos já pactuados de organização dos serviços. “Enquanto a rede de serviços de atenção básica deve ser extremamente capilarizada com unidades de pequeno porte distribuídas o mais próximo possível de onde os usuários vivem e trabalham, a atenção especializada deve ser preferencialmente ofertada de forma hierarquizada e regionalizada, garantindo a escala adequada (economia de escala)”.

 

Na prática, contudo, são inúmeros os indícios de que essas lógicas saíram há muito tempo do controle desejado. “Vivemos formatos antigos, ultrapassados, que não favorecem uma adequada relação sinérgica entre a atenção básica e a atenção especializada", apontou Helvécio Magalhães, na abertura da Conferência Livre Nacional de Atenção Especializada, realizada de modo remoto durante todo o dia 26 de maio. Isso porque a gestão e a capacidade do Sistema têm sido sistematicamente fragilizados, tanto pelos períodos de desmontes do SUS, como o que estamos vivendo desde o Impeachment de Dilma Rousseff e a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, quanto por uma necessidade real de melhorar a integração entre os níveis de atenção no SUS.

 

Cartaz da Conferência Livre de Atenção Especializada

 

Durante a Conferência, a ideia de que não é possível resolver os problemas da atenção especializada sem fortalecer a atenção primária foi quase um uníssono. Não é difícil compreender essa equação: se a UBS é o lugar de onde as pessoas partem e para onde precisam voltar para que exista uma atenção de fato completa, é preciso que essa Unidade funcione muito bem. Que tenha não só médicos, mas equipes completas atuando na Estratégia de Saúde da Família, sem esquecer os fisioterapeutas e demais profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, os NASFs, praticamente descontinuados durante a última gestão federal. Que a referência e a contrarreferência sejam organizadas e orientadas pelo uso de dados, usando Inteligência. Que as ações sejam planejadas de acordo com as necessidades, e não apenas por meio de decisões políticas regionalizadas. Todas questões apontadas por participantes do evento.

 

Como refletir sobre os desafios da atenção especializada é também um objetivo deste Observatório, nos próximos dias publicaremos uma série de matérias sobre os maiores problemas e avanços do setor. E para começar, vamos falar de um dos principais desafios deste nível de atenção: a distribuição de médicos no SUS.

 

A desigualdade que afeta a distribuição e a formação de especialistas

 

Se considerarmos apenas o aspecto força de trabalho, a falta de profissionais de saúde atuando no SUS, tanto na atenção básica quanto na atenção especializada, já foi apontada por algumas pesquisas. Entre elas destaca-se o estudo Demografia Médica 2020, promovido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina.

 

Existem atualmente mais de 340 escolas médicas espalhadas pelo país, que formarão cerca de 35 mil novos médicos por ano a curto prazo. Um incremento em relação à quantidade de médicos formados há dez anos, que era de 20 mil profissionais por ano. O levantamento apontou que em 2020 já existiam 500 mil médicos formados no Brasil, 61,3% deles com um ou mais títulos de especialista. Número que vem crescendo significativamente nos últimos 50 anos, superando inclusive as taxas de aumento total da população. 

 

“De 1970 a 2020, [o número de médicos graduados] cresceu 11,7 vezes (1.170,4%), passando de 42.718 para 500 mil médicos. Já a população brasileira, no mesmo período, foi de 94.508.583 para mais de 210 milhões, um aumento de 2,2 vezes (ou 222,3%)”.

 

Ou seja, não faltam médicos. Mas eles não estão optando pelo SUS, menos ainda se os serviços estão localizados nas regiões Norte e Nordeste do país. A mesma Demografia Médica apontou que em 2020 existiam 2,27 médicos por mil habitantes no Brasil, mas as taxas do Norte e do Nordeste são de 1,30 e de 1,63/1000, respectivamente, cerca de 43% menor que a razão média nacional. Cenário que se manifesta em todos os 16 estados das duas regiões citadas, e que tende a piorar quando se avalia a diferença na distribuição entre capital e interior. Em Recife, por exemplo, a razão de médicos é de 8,18 para cada 1000 habitantes, contra 0,74 dos municípios do interior de Pernambuco.

 

Essa distribuição reflete-se também quando se olha para os especialistas: é nos grandes centros urbanos das regiões mais desenvolvidas do país que eles são encontrados em maior número e diversidade, com destaque para as regiões Sul e Sudeste, além do Distrito Federal. Se considerarmos apenas a especialização em Pediatria, que está entre as quatro especialidades com maior número de profissionais no Brasil, existem 55,82 profissionais para cada 1000 habitantes do estado de São Paulo, enquanto apenas 7,38/1000 atuam em estados como o Piauí e o Maranhão. 

 

“Sabemos da imensa dificuldade de fixar médicos, especialmente em regiões remotas do Brasil e nas periferias das grandes cidades. Temos o desafio de ampliar radicalmente, com toda a força do Estado Brasileiro, mais médicos especialistas. Se formamos 45 mil médicos, temos apenas 13 mil vagas de Residências. É preciso inverter isso progressivamente, ampliando as vagas para formação de residentes, e alocando os profissionais em todo o país, especialmente nas áreas em que há maior vazio assistencial”, declarou também Helvécio Magalhães na abertura da Conferência Livre Nacional de Atenção Especializada.

 

Para o médico e também pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Mário Scheffer, a esse fenômeno dá-se o nome de sobreposição de desigualdades, na formação e na distribuição de especialistas no Brasil. “Tanto uma desigualdade geográfica quanto uma desigualdade entre setores público e privado da saúde. As estruturas do SUS têm menos médicos à disposição do que as estruturas privadas, que atendem a menor parte da população”.

 

Entre as principais razões para a ocorrência do fenômeno, aparecem questões como infraestrutura de saúde precária nas pequenas e médias cidades brasileiras; baixos salários, associados a ausência de planos de carreiras; e dificuldades de seguir os processos de qualificação, uma vez que as oportunidades também estão concentradas em grandes centros urbanos. Levando-se em consideração que a formação de especialistas ocorre principalmente por meio das Residências Médicas, a Demografia Médica 2020 apontava a equivalência: há mais vagas nas capitais e nas regiões Sul e Sudeste. São Paulo, por exemplo, concentrava naquele ano mais da metade dos programas autorizados pelo MEC, 2.491, e 57,3% dos residentes em formação.

 

Outra pesquisa, publicada no periódico Cadernos de Saúde Pública, confirma o estudo citado acima e faz alguns acréscimos. Além das ofertas de vagas em Residências serem fortes indicativos de alocação de médicos nos territórios, fatores como idade e estado civil também impactam nessa distribuição. Seus resultados indicam que os médicos mais jovens são mais propensos a migrar para lugares diferentes de onde se graduaram. E que a condição de trabalho do cônjuge influencia na decisão locacional dos médicos. “Como existe uma dificuldade em conciliar as expectativas de ganhos profissionais e pessoais para ambos com uma mudança, o bem-estar do médico depende do bem-estar de seu parceiro”, é o que aponta a pesquisa.

 

Outros desafios para a formação e distribuição de médicos

 

A falta de sinergia entre atenção primária e atenção especializada, contudo, não se resume à sobreposição de desigualdades na distribuição da força de trabalho. O que ainda parece persistir é uma fragilidade na relação ensino/serviço, uma vez que o ordenamento da formação com base nas necessidades epidemiológica e demográficas dos territórios, como preconiza o Artigo 200, Inciso III da Constituição Federal e a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos para o SUS não está se realizando organicamente.

 

E não se trata apenas de conformar uma relação numérica ideal entre quantidade de médicos em relação à quantidade de pessoas. Trata-se, antes, de qualificar essa relação com foco no desenvolvimento humano e social. Está nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos da área da saúde no Brasil, e da medicina em particular, conforme apontam Ceccim e Pinto: que os cursos atentem “para os aspectos relativos ao desenvolvimento humano - integralidade da assistência, senso de responsabilidade social, compromisso com a cidadania e promoção da saúde integral do ser humano”.

 

“Uma vida longa e saudável, uma vida com máxima autonomia em atividades cotidianas ou uma vida digna decorrente da promoção de saúde desde os aspectos preventivos até o máximo prolongamento do viver com máxima qualidade de participação na cultura a que se pertence. Essas prerrogativas deveriam ser tomadas como direitos inalienáveis, ou seja, a presença de profissionais de saúde com elevada capacidade de atuação cuidadora e terapêutica não pode ter outra distribuição que não a dos territórios do viver. Se faltam provimento e fixação, falta atendimento; se falta atendimento, faltam profissionais; se faltam profissionais, falta formá-los em maior quantidade. Evidenciam-se, então, os dilemas da formação para enfrentar as mudanças requeridas nas realidades”, apontam os autores.

 

Além disso, Mário Scheffer indica que há também uma necessidade de adequar a formação de especialistas às mudanças nas necessidades de saúde. “O perfil de adoecimento e de morte da população brasileira mudou. Houve queda acentuada da mortalidade por doenças transmissíveis, assim como de menores de cinco anos por causas evitáveis. Mas temos um aumento das doenças crônicas não transmissíveis como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Há uma demanda por determinados médicos especialistas e precisamos readequar a formação, reaproximar o perfil e a oferta dos médicos formados à realidade do SUS e da população”.

 

Para o médico e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Federal do Paraná, Adriano Massuda, que foi palestrante da Conferência, é preciso desenvolver estratégias para tornar a relação ensino/serviço mais significativa para graduandos em Medicina. “Faço imersões com meus alunos e levo eles para conhecer a gestão do SUS em Diadema, que é uma cidade histórica do ponto de vista de implantação das políticas de saúde. E aprendi ensinando que quando você vai dar aula de SUS em sala de aula, ninguém gosta. Agora quando você leva para ver a experiência e a prática, o povo que está trabalhando e está vivenciando, todo mundo gosta. Então temos que ter estratégias para a formação dos profissionais no que é o SUS na prática. É fundamental resgatar isso”.

 

O Mais Médicos como tratamento aos vazios assistenciais

 

Para enfrentar os vazios assistenciais causados também pela ausência de profissionais de saúde, entre outras questões, o Governo Federal está retomando a implementação do Programa Mais Médicos, iniciado em 2013 durante a gestão de Dilma Rousseff e descontinuado desde 2018. A expectativa da atual ministra da Saúde, Nísia Trindade, é que 16 mil novos profissionais sejam alocados até o final deste ano em todos os estados brasileiros.

 

Considerando a resposta ao primeiro edital, publicado em maio, o relançamento foi um sucesso. Foram mais de 34 mil médicos inscritos para 5.970 vagas, um recorde em toda a história do Mais Médicos. Em junho, o segundo edital está oferecendo 10 mil vagas, a serem financiadas com a participação dos municípios, que deverão fornecer moradia e alimentação como contrapartida.

 

Fortemente criticado em seu lançamento por trazer médicos estrangeiros, especialmente cubanos, que supostamente estariam ocupando vagas que deveriam ser dos brasileiros, a atual edição mantém os profissionais do país como prioritários durante a seleção. Nenhum profissional estrangeiro foi selecionado no primeiro edital, embora fosse uma possibilidade, uma vez que o importante é conseguir preencher o vazio assistencial.

 

Reformulada em diversos pontos, o Mais Médicos agora tem a duração de 48 meses e seus participantes terão necessariamente sua qualificação ampliada, podendo sair especialistas e/ou mestres, pois a relação ensino/serviço é um critério de permanência no programa. Serão R$712 milhões investidos pelo presidente Lula somente em 2023.

 

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A Conferência Livre de Atenção Especializada foi um passo inicial de um processo de escuta de gestores e trabalhadores do SUS, com o intuito de tratar com profundidade os desafios da média e da alta complexidade no Brasil. Ainda em junho, as discussões sobre esse cenário terão continuidade no Seminário Internacional de Atenção Especializada à Saúde, em Brasília.