A fila para atendimentos e procedimentos médicos  constitui  um problema no Brasil e no mundo há alguns anos (Siciliani et als, 2015). A pesquisa realizada pelo IPEC aponta a demora para ter acesso à consulta, exame ou cirurgia como o maior motivo de insatisfação dos usuários do SUS. Tempos longos de espera podem causar agravamentos de saúde, facilmente evitados com intervenções precoce. 

O problema da fila que já existia, agravou-se com a pandemia, como mostra a reportagem de Gabriel Brito no portal Outra Saúde. A fila de exames e cirurgias se avoluma desde 2020, já que o foco estava direcionado aos efeitos da pandemia. Muitas doenças foram diagnosticadas tardiamente. As cirurgias eletivas foram canceladas e os leitos direcionados ao tratamento da Covid-19.  

No SUS, o manejo da fila se dá em conformidade com a Portaria n°1.559/08, que institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde. A partir da identificação da necessidade do usuário, é feito o direcionamento ao local mais adequado para o seu atendimento, respeitando a priorização por risco. 

Em 2017, o Ministério da Saúde instituiu a fila única para cirurgias eletivas, que considera tanto a ordem de ingresso, bem como critérios clínicos que justifiquem a priorização. Para isso é  utilizado o Sistema Nacional de Regulação (SISREG), software usado para regulação de procedimentos diversos, como consultas, exames e cirurgias eletivas. Mesmo assim,  apesar das políticas e estratégias que visam reduzir o tempo de fila e garantir o acesso aos serviços de saúde, o problema persiste no Brasil e em outros lugares do mundo.

Em 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realizou um levantamento para dimensionar a fila de espera para cirurgias eletivas. De acordo com dados do CFM,  em 2017 a fila chegou a aproximadamente 904 mil pessoas com procedimentos em espera. De lá para cá, não foi observado aumento significativo no quantitativo de internações, logo, pode-se inferir que a fila persiste e inclusive, pode ter aumentado.  

Durante o período da pandemia, de 2019 a 2021, a segunda maior causa de internação foi doenças infecciosas e parasitárias. Dentre essa categoria, 57% das internações foram atribuídas a Covid-19. Ao comparar o quantitativo de internações hospitalares no SUS em 2017 e 2022, observa-se que houve aumento de 9,59% no total de internação.  Quanto a esse aumento, 48% representa internações por Covid-19. Ou seja, mesmo com o aumento das internações ocasionadas por Covid-19, o montante geral de internações não foi substancial e capaz de enfrentar a demanda reprimida. 

 

Reduzir as Filas é um dos principais objetivos da ministra Nísia Trindade

 

Para a nova ministra da Saúde, a ex-presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, a redução da fila de procedimentos cirúrgicos do SUS é um de seus objetivos centrais. A ministra anunciou um pacote de R$ 600 milhões para o início deste amplo esforço de mitigação dos impactos, visíveis e invisíveis, da pandemia. 

Para falar mais sobre o assunto o Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH) da Fiocruz entrevistou a professora Doutora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Marilia Louvison, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).

Médica Sanitarista com residência em Medicina Preventiva e Social pela Escola Paulista de Medicina, Mestre e Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, a pesquisadora atua em Política, Planejamento e Gestão no campo da saúde coletiva, com ênfase em Regulação, regiões e redes de atenção à saúde; Desigualdades no uso e acesso aos serviços de saúde; Envelhecimento e saúde pública; Políticas públicas de saúde e participação social. 


 

Confira a entrevista
 

1)  Recentemente o MS instituiu o Programa Nacional de Redução das Filas de Cirurgias Eletivas, Exames Complementares e Consultas Especializadas. O programa inclui o repasse de recursos para a execução dos planos de Redução das Filas. Você considera a promoção de mutirões uma boa alternativa para a redução das filas? Quais são as vantagens (virtudes) e as limitações (problemas) desse tipo de iniciativa? Em quais situações esta iniciativa deve ser empregada?

Marilia Louvison: Os mutirões são uma medida emergencial em momentos de grande represamento da demanda para ampliar a oferta com mais agilidade, utilizando a disponibilidade dos serviços de ampliar sua capacidade de produção, mediante incremento com financiamento específico para sua contratação. Não resolve o problema crônico das filas de espera e nem atua na dinâmica da oferta/demanda/acesso da atenção à saúde. 

 

2) Na sua opinião, quais critérios poderiam ser adotados para a organização (ordenação) das filas?

M L.: Vários são os critérios que podem ser utilizados, sem deixar de considerar o tempo da entrada na fila, mas, é fundamental incluirmos o uso de protocolos e critérios de estratificação de risco para identificar gravidade da situação e urgência da necessidade de intervenção para evitar seu agravamento, além de considerar as vulnerabilidades individuais e territoriais no sentido de não perder oportunidades de resolução dos problemas. 

 

3) Em que medida a adoção de prazos máximos de espera constitui uma boa medida para a gestão das filas? E a existência de prazos é um garantidor do acesso? 

M L.: Vários países trabalham com tempos máximos de resposta para demandas de cuidados eletivos e pode ser uma boa medida, mas isso não garante o acesso se os sistemas de saúde não se organizarem para o seu cumprimento, criarem sistemas de monitoramento e , a todo tempo, analisarem as barreiras de acesso e avançarem para redução da espera. 

 

4) No ano de 2022 do total de internações realizadas no SUS, aproximadamente 40% delas foram internações cirúrgicas, o percentual mais elevado na última década (segundo dados do SIH). Afora a disponibilização de novos leitos (para além da contratação  e abertura) que medidas adicionais poderiam ser implementadas com vista a se alcançar um maior equilíbrio entre a demanda por cirurgias e a capacidade de atendimento do sistema. Quais estratégias poderiam ser adotadas para que  as pessoas não fiquem à espera de cuidado por tanto tempo?   

M L.: Quanto mais se incrementa o atendimento ambulatorial e sua capacidade de resposta, proporcionalmente as internações se restringem a casos clínicos mais graves, com necessidade de maior intensidade de cuidados e , casos cirúrgicos. Estes, dependem de uma melhor organização das agendas cirúrgicas, bem como da ampliação das cirurgias a serem realizadas em hospital dia, que devem ser ampliados. Cirurgias de grande porte dependem de incremento de leitos de UTI de retaguarda e é preciso ainda enfrentar a baixa incorporação no SUS de tecnologias simples e que trazem melhores resultados e menor tempo de internação, como as cirurgias realizadas por videolaparoscopia.

 

5) Quando pensamos em gestão de filas no SUS, em alguma medida o tema nos reporta à política nacional de regulação e a atuação das centrais de regulação, (sejam elas estaduais ou municipais), assim como às estratégias adotadas de gestão de fila e o uso de protocolos. Qual sua avaliação do processo de regulação assistencial, quais os desafios enfrentados hoje para qualificar a regulação?

M L.:  A política nacional de regulação contribuiu muito no sentido de apontar uma ampliação de seu conceito e ao mesmo tempo, fomentar a organização dos complexos reguladores e dos processos formativos da área. Precisa, no entanto, de maior incentivo e de aprimorar a ferramenta informatizada de regulação, o SISREG, atualmente defasado. No sentido de qualificar uma regulação produtora de cuidado nos territórios é preciso ainda entender a regulação com uma área de intermediação para apoiar a organização das redes de atenção, contribuindo com melhores práticas na articulação entre atenção básica e atenção especializada e atenção hospitalar, construindo processos regulatórios a partir de todos os serviços, avançando com uma regulação clinica de maior autonomia na atenção básica, organizando os núcleos internos de regulação, construindo processos de telerregulação, criando espaços de diálogos, fóruns etc; ou seja, estando presente junto a rede de serviços no sentido de facilitar e monitorar fluxos e acesso. A fila não pode se constituir como um “lugar de não cuidado" para o SUS, onde se espera algo que não se sabe exatamente para que serve e que nunca chega. A qualificação dos complexos reguladores exige avançar em informação, comunicação e transparência.  

 

6) A regulação da internação eletiva, na central de regulação, seria uma forma de tirar a fila do hospital, de dar maior transparência à fila, de garantir a utilização de critérios para avaliação dos casos e gestão da fila? 

M L.: Sempre depende de como a rede hospitalar está organizada, qual o papel do hospital de referência no processo regulador e qual o tensionamento local entre a oferta eletiva e de urgência mas, a princípio sim, na organização dos complexos reguladores se preconiza centrais ambulatoriais e hospitalares, incluindo a de cirurgias eletivas.  

São diferentes cirurgias de hérnia, fimose, catarata, bariátricas, ortopédicas ou neurológicas , pois se inserem em distintas linhas de cuidado, dependem de caminhos variados para sua efetiva indicação e preparo no sentido de garantir o conjunto de necessidades, como o pré e o pós operatório e os dias cirúrgicos de agendamento com equipe qualificada para realizar o procedimento. Costuma-se organizar essa oferta e demanda , identificando as que são passíveis de serem realizadas em hospital dia, as de maior complexidade, por especialidade cirúrgica, devendo ser feita a gestão da fila, não deixando a decisão isolada do prestador prevalecer sobre sua priorização.

 

7) O NIR (Núcleo interno de regulação)  nos hospitais poderia fazer a gestão da fila eletiva, com um médico regulador? Isso acontece ou o NIR tem seu escopo reduzido, muitas das vezes, a realização do censo hospitalar, solicitação de exames externos e a movimentação de pacientes? 

M L.: O NIR , apesar de também ter uma função da gestão dos leitos , jamais será um NIR se não tiver uma atuação desta gestão "para dentro” e “para fora”. A organização de processos internos de agilização da retirada de macas do pronto socorro, a redução dos tempos de permanência e aumento da ocupação, a criação de sistemas tipo “Kambam”  ou metodologias ágeis como a lean, com foco na agilização e redução de desperdícios, são fundamentais para organização dos serviços. É essa articulação de uma melhor rotatividade interna com uma ampliação da capacidade da oferta qualificada para os serviços diferenciados da rede que trazem a potência para a organização do NIR. A gestão da eletiva deve ser feita preferencialmente pelo complexo regulador em articulação com os NIRs, que faz a gestão para dentro do hospital e garante a oferta pactuada como parte do sistema de regulação. 

  

8) Os dados também mostram que existem menos médicos contratados hoje do que em 2013, ou seja, também diminuiu a capacidade de atendimento na atenção primária. O problema da fila não é apenas para cirurgia, ele começa na atenção primária. Como resolver esse outro problema? A telemedicina seria uma opção viável? 

M L.: A questão da atenção básica é um tema bastante caro ao SUS e precisa ser enfrentado. Defendemos uma atenção básica universal, integral, qualificada, que pode resolver grande parte dos problemas da população. Ela conhece o território, cadastra toda sua população e estratifica riscos, identificando necessidades e demandas de maneira muito mais efetiva e articulando com a atenção especializada e hospitalar na produção das redes no território. A telessaúde pode contribuir com o atendimento em situações de grande distância, proporcionando, por exemplo, consultas especializadas compartilhadas com os médicos de família, na própria atenção básica.  Foi uma grande contribuição durante a pandemia. Pode trazer grandes avanços para o processo de cuidado e de regulação mas não pode ser tratado como uma panaceia, as desigualdades no uso tecnológico precisam ser consideradas, assim como a cultura do povo brasileiro. E a telessaúde não vai resolver a falta de médicos, o SUS precisa de mais profissionais, mais recursos, mais gestão, mais regulação e mais cuidado! Já avançamos muito, é tempo de melhorar e enfrentar desafios persistentes e também os novos que se apresentam....