Lenir Santos e Francisco Campos Braga Neto*
A pandemia do novo coronavírus tem estressado os sistemas de saúde no mundo ao seu limite. O enfrentamento da Covid-19 exige a coordenação unificada de ações e o emprego de todos os recursos disponíveis. No Brasil, os desafios não são menores. Na área hospitalar, o SUS tem feito esforços para expandir a rede assistencial, especialmente os leitos de cuidado intensivo. Contudo, a expansão gradativa de leitos pode não ocorrer em tempo hábil para atender à crescente demanda por internações, o que gera a necessidade de assegurar margem ao sistema público, para além das medidas de isolamento social que ainda não alcançaram 70% da população.
Após os dois primeiros meses da epidemia, a rede pública sofre com a falta de leitos. Em algumas capitais, como Manaus, Macapá, São Paulo, Fortaleza e Palmas a capacidade de atendimento hospitalar já se encontra à beira do esgotamento. O mesmo não ocorre com a rede privada. Em decorrência da redução das internações eletivas, os hospitais privados registram baixa ocupação dos leitos. As consequências derivadas deste quadro são trágicas – há um número crescente de pessoas morrendo à espera de acesso aos cuidados que necessitam. Mortes, em alguma medida, evitáveis.
A rede privada brasileira, por sua vez, conta com 55% dos leitos de intensivos e é responsável pelo atendimento de ¼ da população, enquanto os ¾ restantes tem acesso exclusivamente ao SUS. Neste cenário, a regulação unificada de leitos públicos e privados pelo Poder Público é uma medida necessária e viável juridicamente. Salvar vidas é o objetivo do Estado e para isso ele deve lançar mão de todos os instrumentos jurídicos existentes, como é o caso da requisição de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas, conforme preveem a Lei n. 8.080, de 1990 e a Constituição.
A abertura de novos leitos públicos é medida de extrema importância; contudo torná-los operacionais demanda tempo pela exigência de equipamentos, insumos e a contratação de recursos humanos qualificados. Neste momento, quando o mundo inteiro disputa a compra desses insumos, contar com novos respiradores não será fácil, bem como com novos profissionais de saúde. Cabe, portanto, reconhecer a importância da requisição pelo gestor público, dos leitos privados em carácter emergencial e conforme as circunstâncias loco-regionais. Tais recursos deverão ficar sob a gestão das centrais de regulação estaduais, regionais ou municipais.
Sendo o SUS regionalizado, é possível definir na Comissão Intergestores Bipartite como essas requisições devem ocorrer para uma atuação interfederativa harmônica. Necessário, também, que a autoridade sanitária estadual ou municipal faça um planejamento para a gestão única dos leitos conforme pactuação e mediante indenização justa aos hospitais. Não se trata de expropriação, mas sim de uma gestão unificada de leitos no país, sem nenhum prejuízo a terceiros; uma medida administrativa unilateral em nome da supremacia pública para atender o interesse público.
É pertinente discutir os parâmetros do que seja uma indenização justa para que o pêndulo da balança não vá mais para um lado que outro; nem prejuízo para a iniciativa privada nem lesão aos cofres públicos. Os valores das tabelas SUS são um ponto de partida para a definição de parâmetros, bem como valores médios praticados no mercado.
A medida, já realizada em países como França, Irlanda e Espanha, foi também recomendada pelo Conselho Nacional de Saúde. A recomendação reafirma a importância da garantia de acesso a cuidados hospitalares por aqueles que os necessitem, mediante a requisição de leitos privados. Apoiam esta iniciativa a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa e Serviço Social (Abepss), Associação Paulista de Saúde Pública (APSS), Faculdades de Medicina e Saúde Pública da USP, e movimentos como o Vidas e Iguais e Leitos para todos.
Argumentos de que contratações de leitos privados já existem, confundem contrato com o instituto administrativo da requisição. Há uma diferença significativa entre elas. A primeira é voluntária, um acordo de vontade das partes; a segunda, o jus imperii do Estado em nome do interesse público. Os editais desertos de chamamento para contratações no Rio são exemplos enfáticos da necessidade do Estado na garantia da efetividade de direitos.
O direito à saúde tem como um dos seus princípios a segurança sanitária (art. 196 da Constituição), que se inscreve como dever de todos os gestores do SUS, o qual deve se expressar em atos que evitem riscos sanitários. Sem leitos disponíveis no setor público e os havendo no setor privado, a situação de emergência sanitária requer atuação da autoridade pública para salvar vidas, coordenando todos os leitos disponíveis, de modo igualitário, em respeito à dignidade da pessoa humana e como medida de solidariedade, conforme determina a Constituição.
Vidas estão em jogo e todas elas importam. Nossos governantes não podem mais retardar tal decisão.
Lenir Santos é advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e professora colaboradora da Unicamp; conselheira do CNS.
Francisco Campos Braga Neto é médico sanitarista, mestre em Saúde Pública pela Fiocruz e professor da Fundação, onde coordena o Observatório de Política e Gestão Hospitalar.