Autora: Ana Angélica Soares (OPGH/Fiocruz)

Racismo estrutural e presídios

A invisibilidade dos dados da pandemia paradoxalmente desvela uma realidade cruel: a invisibilidade social. Edição de junho da Piauí trata como a pandemia amplia a violência contra presos e, por conseguinte, contra negros –  que compõem 58% da população carcerária do país. O artigo relata que a letalidade da COVID-19 nos presídios pode ser até 5,5 vezes maior do que na população em geral. Até o início de maio, apenas 2.155 testes haviam sido aplicados em todo sistema prisional, que possui 755.274 mulheres e homens presos e é o terceiro maior do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China. Somente no estado de São Paulo, 25% dos detentos e detentas fazem parte dos grupos de risco. A autora do artigo, Juliana Borges, lembra também que os presídios brasileiros sofrem uma epidemia de tuberculose, com uma incidência 35 vezes maior do que na população como um todo. Por estas razões, o Brasil foi denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização dos Estados Americanos (OEA).

Populações indígenas e os grotões da pandemia

Entre a população indígena, o cenário também é grave e não menos opaco. O jornal O Globo publicou destaques de um estudo feito pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). A pesquisa – feita com dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde, e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)  – revela que, de acordo com dados oficiais, 2.219 indígenas foram infectados pelo novo coronavírus, com 86 registros de óbitos, até 14 de junho de 2020. A contabilidade, no entanto, não considera as vítimas indígenas nas cidades nem os doentes que não passam pelo atendimento de saúde e morrem nas aldeias. A COIAB contabilizou 1.443 mortes adicionais aos 2.219 registrados pela SESAI, totalizando 3.662 casos confirmados e indicando uma subnotificação de 39%. Os dados de óbitos estão subnotificados em 65%, já que a COIAB contabilizou 249 falecimentos.

A interiorização da COVID-19 –  com o epicentro do contágio saindo das metrópoles para cidades menores e mais afastadas dos núcleos urbanos – é outro fator de invisibilidade da pandemia. Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, o historiador da Casa Oswaldo Cruz (Fiocruz) Luiz Antônio da Silva Teixeira diz que a epidemia ficará mais oculta conforme as mortes passem a acontecer em lugares mais pobres e distantes, como ocorreu no Brasil durante a Gripe Espanhola. Ele lembra que os primeiros estudos sobre ela consideravam registros do Rio (então capital do Brasil) e de São Paulo (onde o vírus se disseminou primeiro, provocando mais mortes), mas que investigações recentes mostraram as mortes em regiões distantes dos centros, onde não havia contagem nem divulgação dos óbitos. Assim como no caso da Gripe Espanhola, o historiador acredita que a dimensão real da pandemia vai demorar anos para ser calculada.

A invisibilidade nas grandes cidades

Além dos presídios, os dados da COVID-19 nas periferias dos centros urbanos constituem lacunas na contabilização oficial da pandemia – o que acontece de forma inversamente proporcional ao tamanho da população dessas áreas. A Agência Mural de Jornalismo nas Periferias retratou em junho, no jornal Folha de São Paulo, o apagão de informações oficiais relativas à pandemia nas favelas e bairros pobres paulistanos. A agência afirma que a situação nas comunidades da capital não é informada, e que  líderes comunitários de Paraisópolis e de Heliópolis relatam dificuldades em conseguir dados oficiais sobre a infecção. O fato se repete em relação às mais de 1.700 comunidades da capital. O pouco que se sabe não é nada alentador: as pessoas nas periferias têm uma probabilidade dez vezes maior de morrer de COVID-19 que os habitantes das demais áreas. Brasilândia e Sapopemba são ainda apontadas pela prefeitura como localidades perigosas para o contágio, e também com a maior taxa de óbito – seguidos por Grajaú, Capão Redondo, Jardim São Luis e Jardim Ângela. A agência destaca, também, que a prefeitura de São Paulo não distingue, nas comunidades, as mortes confirmadas das mortes suspeitas. Na apuração do OPGH, o boletim situacional da pandemia divulgado pela prefeitura no dia 29 de maio divide a cidade por distritos administrativos, e a distinção entre mortes confirmadas e suspeitas é feita de forma agregada para todo o município (1).  A agência realiza, ainda, um boletim exclusivo do coronavírus nas periferias paulistanas.

No monitor da cidade do Rio (atualizado diariamente), os casos não são localizados por comunidade, embora haja o registro dos bairros. Para  fornecer um panorama da pandemia nas favelas, o Voz das Comunidades também fez seu próprio monitor – o Painel Covid nas Favelas. No dia 23 de junho, as favelas da Maré, Rocinha e Jacaré lideravam o número de casos, sendo que a Maré também possuía mais mortes pela doença. Na data, o total era de 2.094 casos confirmados e 438 mortes nas favelas do Rio. De acordo com a série histórica do painel (que vem desde o dia 23 de março de 2020), o pico de casos aconteceu no dia 2 de junho. Para atualizar o painel, o Voz das Comunidades tem que colher, todos os dias e de forma manual, informações com a prefeitura do Rio de Janeiro, o governo estadual do Rio de Janeiro, a Clínica da Família Zilda Arns, a Clínica da Família Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, o Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria (ENSP), a Clínica da família Victor Valla, a Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza, a Clínica da Família Valter Felisbino de Souza, a Unidade de Saúde da Família João Candido, a Clínica da Família Anthídio Dias da Silveira, a Clínica da Família Rinaldo De Lamare, o Cms Dr Albert Sabin e o Comitê SOS Providência.

Notas:

1) O governo do estado de São Paulo também tem um painel - que informa por cidades e traz, em destaque, a situação da capital e região metropolitana: https://www.seade.gov.br/coronavirus/

Foto de capa: Nayani Teixeira, Unsplash