Data da publicação: 31/01/2024
 

Autoras: Ceres Albuquerque e Juliana Machado (OPGH Fiocruz)

 

 

O Observatório de Política e Gestão Hospitalar - OPGH, extrai, qualifica e dissemina publicamente, através da ferramenta Tabnet, informações referentes às internações hospitalares na saúde suplementar (SS) em todo o Brasil, com atualização anual.

Estes dados são registrados originalmente por prestadores de assistência e operadoras de planos de saúde, no âmbito da Troca de Informações da Saúde Suplementar (TISS/ANS), e repassados à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) periodicamente. A ANS então, após trabalho de validação e tratamento dos dados, os disponibiliza em formato aberto, por meio do Portal de Dados Abertos do Governo Federal, alinhando-se à política que se fundamenta no desenvolvimento de um ecossistema de dados e informações que beneficia a sociedade e favorece a cooperação entre os setores, incluindo a iniciativa privada, a academia e o próprio governo.

Neste artigo, buscou-se apresentar dados atualizados de internações na SS ocorridas entre 2015 e 2022, situando-as no contexto do sistema de saúde brasileiro a partir de comparações gerais com as internações ocorridas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Apesar da relevância de informações sobre internações na SS no Brasil, deve-se também considerar as fragilidades inerentes a uma base de menor tempo de maturação como o TISS/ANS. Nesse sentido, alguns aspectos críticos foram abordados, buscando-se contribuir para uma análise responsável dos dados divulgados.

 

  1. Considerações sobre os dados de internações na SS

 

1.1 Disponibilidade de dados de internações na SS

A ANS tem publicado dados abertos sobre a utilização de serviços de saúde pelo setor privado sob sua regulação, informados através do TISS – Troca de Informação em Saúde Suplementar. Em 2020 foram divulgados os primeiros dados, referente a 2015 a 2019, sendo a última atualização publicada em setembro de 2023, com dados datados até 2022.

Essas informações sobre as internações privadas são extremamente importantes para preencher uma lacuna do conhecimento na área da saúde do país. Elas permitem um melhor diagnóstico, avaliação e pesquisa, além de auxiliarem na gestão, planejamento e definição de políticas públicas.

Ao incluir as internações da saúde suplementar (SS) juntamente com as internações do SUS, é possível ter praticamente a totalidade dos dados sobre internações no país. Não são incorporadas apenas as internações públicas fora do SUS, como nos hospitais militares e de alguns planos públicos de servidores, e as internações privadas pagas diretamente, não realizadas por meio dos planos privados de saúde que são, porém, casos bastante residuais e pouco representativos no total do país.

 

    1. Alguns desafios para a análise dos dados de internações na SS

As informações de dados e indicadores das internações da SS são um campo bastante novo, pouco estudado e com raras publicações acadêmicas de referência.

Enquanto as internações do SUS são amplamente conhecidas e trabalhadas, graças ao vasto trabalho de disseminação do Sistema de Informação Hospitalar (SIH), que é um sistema consolidado, com dados de bastante quantidade e qualidade, por vezes sujeito a problemas por conta de condições orçamentárias, regras de financiamento e habilitação de serviços de saúde ao SUS, as internações privadas ainda precisam ser mais bem trabalhadas e estudadas.

Para a análise proposta neste artigo, importa destacar que no SUS a tabela de procedimentos, denominada SIGTAP, possui  estrutura hierarquizada em Grupo, Subgrupo, Forma de Organização e Procedimento. As internações no SIH utilizam o procedimento principal, vinculado a cada internação, que engloba atos profissionais, equipamentos, medicamentos e materiais e associa cada procedimento à internação. Ao procedimento principal podem ser agregados outros procedimentos “secundários”, como exames de maior complexidade, medicamentos e OPME e mesmo outros “atos” cirúrgicos, como ocorre por exemplo, em maior escala, nos procedimentos de cirurgia múltipla, sequencial e politraumatizado.  Já na SS, não há registro de procedimento principal; assim, pode haver diversos procedimentos associados a uma mesma internação, sem indicação formal de qual deles motivou ou melhor representa a internação.

Vale esclarecer também que, enquanto no SUS as internações podem ser classificadas por grupos de procedimentos em Cirúrgicos, Clínicos, Com finalidade diagnóstica e Transplantes de órgãos, tecidos e células, na SS a classificação ocorre nos tipos Cirúrgica, Clínica, Obstétrica, Pediátrica e Psiquiátrica.

No OPGH publicamos para a SS quatro diferentes Tabnets: 1 – Dados consolidados, com a quantidade total de internações e vários atributos, como tipo, uso de UTI, faixa etária, óbito, residência, local do prestador,  diagnóstico, dentre outros;  2 – Dados detalhados por procedimentos/eventos em saúde; 3 – Dados detalhados por medicamentos/materiais/OPME/diárias/taxas/gases; e 4 – Dados detalhados informados por código próprio ou pacote de procedimentos.

Apenas no Tabnet de Dados Consolidados é possível se chegar ao total de internações, os outros detalham a utilização de serviços, medicamentos e materiais e sua totalização é maior que o número de internações, tendo em vista que em uma mesma internação podem ser realizados mais de um procedimento.

Vale ressaltar que, como proxy em estudos específicos é possível investigar, a partir dos dados do TISS/ANS, quantas internações possuem em seu registro determinado procedimento de interesse.

Outro importante desafio diz respeito à análise por idade, já que a partir das divulgações de 2021 e 2022 os dados abertos do TISS/ANS deixaram de informar a idade detalhada, passando a divulgar faixas etárias. Este é um fator limitador para cálculo direto da idade média do paciente, a exemplo que ocorre no SUS, e também, especialmente importante, para estudos em menores de 1 ano e maiores de 80 anos.

Por fim, destaca-se liminar judicial que impede a categorização do dado sobre diagnóstico conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID) como de registro obrigatório, o que impacta sobre a massa de dados, que possui cerca de 30% de omissão dessa informação, com oscilações entre 23 e 37% no período estudado. Soma-se ainda outra parcela, de cerca 10%, registrada em capítulos de diagnósticos inespecíficos: Capítulo 21 - Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde; e Capítulo 18 - Sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em outra parte; o que totaliza 48% das internações em SS em 2022.

 

  1. Análise dos Dados de Internação na Saúde Suplementar no Brasil, de 2015 a 2022.

Somando-se internações com financiamento público (SUS) e com financiamento privado (SS) no Brasil, de 2015 a 2022, podemos observar um crescimento até 2020, quando ocorreu uma grande restrição na oferta e demanda devido à pandemia de Covid-19. Os números de 2021 indicaram uma reativação dos serviços, porém ainda abaixo dos níveis anteriores, enquanto em 2022 vemos a continuidade do crescimento observado nos anos iniciais do período mencionado (Gráfico 1).

O crescimento de cerca de 1 milhão de internações no país entre 2019 e 2022 foi significativamente maior na SS, que concentrou a variação positiva de 800 mil internações enquanto o SUS contabilizou 200 mil no mesmo período (Tabela 1).

 

                                                                            Gráfico 1

                                

 

                                                                            Tabela 1

                   Tabela, Linha do tempo

Descrição gerada automaticamente

 

Ao longo do período, a proporção das internações registradas pela SS cresceu em relação àquelas registradas no SUS, passando de 30,1% do total de internações no país em 2015 para alcançar 36,3% em 2022. Os beneficiários de planos privados hospitalares eram 24% da população brasileira no último ano, indicando uma quantidade de internações 50% maior na SS do que na população sem plano. É importante considerar que parte desse crescimento pode se dever à qualificação da base de dados da SS, que evoluiu quanto à captura de dados, tratamento e divulgação pela ANS,  conforme discutido em artigo anterior do OPGH (2023) e pontuado acima. Mesmo assim, ainda que subestimada por fragilidades inerentes a uma base de menor tempo de maturação como o TISS/ANS, a proporção de internações na SS observada em 2022 já explicita importante desigualdade no acesso e utilização de internações da população brasileira (Gráficos 2 e 3).

 

                                                                                  Gráficos 2 e 3

                      

 

 

Em relação ao tipo de assistência prestado, no ano de 2022, as internações cirúrgicas na SS responderam por 39% e as clínicas por 45%, alcançando cerca de 85% do total (Gráfico 4).

Uma comparação das internações de 2022 do SUS e da SS, segundo suas classificações, nos mostra em ambos os setores uma maior proporção de internações clínicas do que cirúrgicas, sendo estes tipos responsáveis pela maioria dos casos registrados.

Em relação às internações obstétricas, grupo específico de registro na SS, observou-se cerca de 5,6% do total, não sendo possível distinguir a proporção de clínicas e cirúrgicas conforme se dá no SUS. Para fins de comparação, é possível destacar dos grupos cirúrgico e clínico no SUS as internações por parto, que alcançam cerca de 15,6% do total de internações no SUS, o que denota importante diferença de perfil de internação nos dois grupos (Gráficos 5, 6 e 7).

Ainda que se adicione aos 5,6% de internações do tipo obstétricas a parcela registrada como clínica e cirúrgica para a qual o diagnóstico se classifica em parto e puerpério, esse tipo de internação passaria a somar 6,5% do total da SS, não alterando o perfil observado (Tabela 4).

 

                                                                   Gráfico 4

    Gráfico, Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente

                                                                           Tabela 2

           Tabela, Excel

Descrição gerada automaticamente

 

                                      Gráfico 5                                                                                Gráfico 6

                                                                                    Gráfico 7

                                        

Os procedimetos de parto cirúrgico e clínico foram somados e excluídos de seus respectivos grupos de procedimento.

 

Ainda sobre o tipo de internação, somam-se 521 mil internações classificadas como pediátricas, correspondendo a 7,3% do total na SS. No entanto, ao observar o dado por faixas etárias, observam-se 225 mil casos em maiores de 20 anos, indicando a necessidade de crítica para o registro desses casos. Além disso, há ainda 162 mil internações em menores de 15 anos no tipo cirúrgica e 178 mil no tipo clínica, o que acrescentaria 340 mil internações às pediátricas, apontando a dificuldade e possibilidade de erro de análise ao se trabalhar por tipo de internação no caso das pediátricas (Tabela 3).

Vale lembrar que no SUS as internações pediátricas podem ser obtidas pela idade e pela especialidade do leito de internação, não existindo grupo específico.

                                                                          Tabela 3

Tabela

Descrição gerada automaticamente

 

 

Em relação às principais causas de internação na SS, destacam-se as doenças do aparelho geniturinário, do aparelho digestivo e aparelho respiratório, seguidas de dois capítulos inespecíficos. Ao se comparar com a morbidade hospitalar do SUS, onde Parto é a principal causa, na SS aparece na sétima posição, e Causas Externas, segunda causa no SUS, ocupa a décima posição na SS. Estes dados ressaltam o papel do SUS em casos de emergência, entre os quais tomam relevo os casos obstétricos e as causas externas. (Tabelas 4 e 5).

Vale ressaltar neste ponto que entre internações do SUS o diagnóstico é completamente informado, e os capítulos inespecíficos são pouco representativos percentualmente.

 

                                                                                  Tabela 4

Interface gráfica do usuário, Aplicativo, Tabela

Descrição gerada automaticamente

    Nota: Ordenação pelo ano de 2022.

 

                                                                                           Tabela 5

Interface gráfica do usuário, Aplicativo, Tabela

Descrição gerada automaticamente

 

Considerações finais

A divulgação dos dados abertos de utilização de serviços de saúde sobre os atendimentos financiados pela saúde suplementar abre um grande horizonte de ampliação do conhecimento sobre a atenção à saúde no país.

A disseminação pelo OPGH/Fiocruz, através de Tabnets de dados e informações qualificadas e de fácil utilização por diferentes perfis profissionais permite avaliações bastante detalhadas e abrangentes sobre a atenção hospitalar no país.

No âmbito das limitações no uso desses dados, destacam-se algumas questões levantadas neste estudo, para as quais há espaço para estudos mais detalhados, bem como debates que promovam a interlocução entre serviço e academia.

A liminar judicial que impede a obrigatoriedade de envio à ANS das informações de diagnóstico nas internações realizadas no âmbito da SS dificulta e algumas vezes impede o melhor conhecimento sobre as estatísticas de saúde do país. O alto grau de preenchimento de capítulos CID inespecíficos nas internações também contribui para a fragilidade das análises sobre diagnóstico na SS.

A falta de indicação de um procedimento principal e os secundários, compondo uma internação, dificulta uma melhor avaliação, análise e disseminação dos dados das hospitalizações na SS.

Algumas inconsistências identificadas na captura dos dados do TISS pela ANS podem justificar uma revisão sobre tipos de internação, com a exclusão, por exemplo do tipo pediátrica, que se poderia ser obtido pela idade, melhor informação sobre o tipo obstétrica limitada à faixa etária, e a necessidade da explicitação do tipo psiquiátrico, talvez necessária em função de internações de maior tempo de permanência.

A não divulgação de idade detalhada, justificada pela ANS pela LGPD, pode resguardar dados críticos ao mercado de planos de saúde, mas afeta a informação em saúde no país. Para enfrentar esta situação, seria importante estudar outras formas de divulgação dos dados, apartando informações epidemiológicas das de negócio, avaliando a disseminação sem identificação de municípios menores, entre outras possibilidades.

Por fim, vale apontar a existência de um grande campo a ser explorado a partir da divulgação dos dados abertos sobre a utilização de serviços financiados pela SS, ainda pouco estudado, e como breves estudos exploratórios como este podem contribuir para a construção de dados nacionais em saúde, capazes de contribuir para a evolução do planejamento e prestação do cuidado em saúde no país.

 

 

 

Referências

2023 OPGH - Internações no Brasil: Oferta e utilização no SUS e na saúde suplementar de 2015 a 2021 | Observatório de Política e Gestão Hospitalar (fiocruz.br)