23/05/25
Daniel Lyra-Queiroz
A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), aprovada pela Portaria nº 254 do Ministério da Saúde em 2002, prevê a criação de um modelo complementar e diferenciado dos serviços de saúde, incluindo a assistência hospitalar, que objetiva a proteção, promoção e recuperação da saúde dos povos indígenas. A Política encontra amparo na Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a proteção às especificidades culturais e aos direitos dos povos originários, bem como a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8080/1990), que prevê o acesso desses grupos ao Sistema Único de Saúde (SUS) em âmbito local, regional e a centros especializados, de acordo com suas necessidades.
Mesmo com a Política, diretrizes e leis específicas, a atenção à saúde aos povos indígenas no Brasil ainda encontra graves dificuldades. A recente emergência sanitária no território Yanomami (entre os estados do Amazonas e Roraima), declarada pelo Ministério da Saúde em 2023, vitimou mais de 570 crianças e trouxe à baila a necessidade de repensar os cuidados em saúde a esses grupos.
Tendo em vista a necessidade de garantir uma assistência humanizada e respeitosa, além de implementar o que está previsto na PNASPI, o Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista, capital do Estado, passou a implementar, desde 2022, diversas iniciativas de acolhimento, do momento de entrada na emergência da unidade até o momento da alta hospitalar. Entre as medidas, para trazer conforto aos pacientes, estão adequações físicas ao espaço, como o uso de redes no lugar de macas e enfermarias específicas com acesso a um jardim.
O HGR é uma unidade estratégica no atendimento aos indígenas, pois Roraima é o estado do Brasil com a maior proporção de indígenas do país e o quinto maior em números absolutos, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao todo, existem 97.320 pessoas autodeclaradas indígenas, o que corresponde a 15,2% do total de 636.707 habitantes do estado.
A unidade é o hospital de referência para casos de urgência e emergência, atendendo toda a população e também aos países fronteiriços Venezuela e Guiana. O acesso ao HGR, no caso das populações indígenas, ocorre, na maior parte dos casos, através da emergência. Existem também as idas e internações para procedimentos específicos e cirurgias, via regulação. Em 2025, o Hospital atendeu 622 indígenas e houve necessidade de internação para 313. Os povos Ingarikó, Macuxi, Wapixana e Yanomami são os mais atendidos na unidade.
Além das adequações no espaço, como o uso de redes no lugar de macas, até a alimentação oferecida ao paciente é diferenciada e considera os hábitos alimentares de cada etnia. A equipe do hospital também conta com intérpretes, que propiciam uma melhor comunicação dos profissionais de saúde com pacientes e familiares. A implementação de Práticas Integrativas Complementares em Saúde (PICS) também faz parte das ações e inclui o atendimento por pajés, curandeiros e curadores no Hospital.
Para implementar as ações, a equipe do hospital realizou um levantamento por etnias, que considerou as especificidades culturais de cada grupo. Uma das estratégias utilizadas para pensar essas iniciativas foi a escuta humanizada com pacientes, como explica a diretora técnica do HGR, Juliana Gomes. Entre as perguntas utilizadas estavam: "A alimentação que serviram hoje, você gostou? Acrescentaria algo?", "Este espaço está bom para você?", "O que você mudaria?", "Você se sente acolhido?".
“Diante desses levantamentos, iniciou-se a construção de uma Coordenação Indígena com atendimento diferenciado e específico, com as adaptações no cardápio de acordo com as etnias. Nas visitas diárias, os indígenas solicitam a mudança no cardápio e a equipe de nutrição junto à coordenação indígena o monta. Os armadores de rede adaptados nos blocos são utilizados de acordo com o fluxo das internações. Vale ressaltar que dentro da Coordenação Indígena isso ocorre também para o acompanhante”, detalha.
As ações lideradas pela Coordenação Indígena do hospital são pensadas para evitar a evasão hospitalar e garantir que o paciente tenha condições para terminar o tratamento, num ambiente acolhedor. Dessa maneira, em razão da reclamação de pessoas indígenas por comportamentos preconceituosos de outros pacientes e acompanhantes, outra medida foi a criação no HGR de uma sala específica de acolhimento. Todas as ações adotadas são avaliadas em reuniões trimestrais. É nesse momento que a equipe verifica se há necessidade de mudar as estratégias.
Uma das principais conquistas identificadas pela equipe do hospital, de acordo com Juliana Gomes, é o paciente completar o tratamento e criar um vínculo com o hospital. Destaca-se também o aumento de 20% no número de atendimentos.
“A aceitação para o término do tratamento foi uma das maiores conquistas, pois antes tínhamos pacientes que não aceitavam o tratamento no HGR. Atualmente, a coordenação recebe ligação solicitando apoio, pois querem retornar tanto para realizar as cirurgias quanto para o retorno de uma nova consulta, já que a maioria não se sente segura de ter atendimento em um outro lugar”, conta.
Mas ainda há diversos desafios na assistência aos povos indígenas. Entre as questões, a diretora técnica do HGR enumera a necessidade de melhorar a formação dos profissionais e o aumento no número de intérpretes, figuras-chave na condução do atendimento humanizado.
“Os desafios são inúmeros. Acredito que um dos maiores gargalos é a falta de profissionais intérpretes para a contratação na rede pública de saúde, devido a fragilidade educacional nos territórios indígenas. Além disso, é necessário criar uma formação de profissionais específicos em saúde indígena, em que na sua grade curricular fosse introduzida, pelo menos, uma língua desses povos. Tal medida seria fundamental para destravar esse gargalo”, afirma.
A experiência do HGR foi apresentada no II Fórum Nacional de Políticas Estaduais de Atenção Hospitalar, que reuniu gestores, pesquisadores e profissionais da saúde, nos dias 2 e 3 de novembro de 2024, em Fortaleza, capital do Ceará, durante as atividades de pré-congresso do 5º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde (5º PPGS). A iniciativa foi coordenada pelo Observatório de Política e Gestão Hospitalar da Fundação Oswaldo Cruz (OPGH/Fiocruz) em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS).