A situação dos hospitais federais tem ocupado o centro do debate acerca da atenção hospitalar no Estado do Rio de Janeiro desde 2023.
Tradicionalmente dedicados ao atendimento dos casos de alta complexidade na cidade e no estado, estes estabelecimentos há diversos anos têm vivenciado o sucateamento de suas instalações, problemas recorrentes de desabastecimento e falta de reposição de profissionais, dificuldades que levaram ao fechamento de parte de seus serviços e à progressiva redução de sua capacidade assistencial, comprometendo ainda mais o acesso qualificado a cuidados hospitalares no SUS.
A posse de um novo governo, declaradamente engajado no fortalecimento do SUS, viria a suscitar a expectativa de plena recuperação das seis unidades. A reversão de tal quadro, no entanto, mostrou-se muito mais complexa do que se imaginava. Diagnóstico elaborado pelo Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) – MS, em 2023, revelava o estado de abandono dos seis hospitais, “apresentando 593 leitos fechados, enfermarias e centros cirúrgicos interditados, desabastecimento de insumos e medicamentos, equipamentos e infraestrutura sem manutenção, além da redução de mais de 16 mil servidores estatutários e déficit de 7.000 profissionais”.
Além disso, o enfrentamento destas questões pelo governo envolvia desafios de outra natureza: (i) o esvaziamento do corpo técnico do DGH – setor responsável pelo gerenciamento das unidades; (ii) as fortes pressões político-partidárias para a ocupação de cargos diretivos das unidades; (iii) a morosidade para contratação de pessoal; (iv) a carência de recursos financeiros para a plena restauração das condições de infraestrutura apropriadas para o funcionamento dos serviços; (v) a falta de clareza quanto a destinação e ao(s) modelo(s) de gestão sob o qual as unidades deveriam passar a operar e, ainda, (vi) a dificuldade de diálogo junto a um corpo de servidores que há anos não via o seu trabalho reconhecido.
Não obstante os esforços e os recursos investidos, a situação dos hospitais pouco se alteraria passados os primeiros doze meses de governo. Pressionado por uma sucessão de escândalos e crises, o Ministério da Saúde (MS) adota em março passado uma nova estratégia: a instituição de um Comitê Gestor, sob a condução da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES) e com representantes do DGH, assessorias, coordenações e secretarias do ministério, tendo por incumbência promover ações emergenciais e avançar na reconstrução e fortalecimento dos hospitais federais.
Desde então, concomitantemente à introdução de algumas medidas administrativas como a centralização dos processos de compras, o Ministério procura avançar na formulação de um programa de reestruturação das unidades por meio de um núcleo interinstitucional, do qual participam a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Grupo Hospitalar Conceição (GHC).
O elemento central deste trabalho envolve a definição da destinação institucional e do modelo de gestão para estes hospitais. Em consonância com o princípio da descentralização de serviços, quadros do governo federal têm sustentado que não caberia mais ao MS manter os seis hospitais sob a sua gestão. A orientação proposta seria estabelecer uma solução integrada, articulada e federativa. Ou, em outras palavras, um modelo de gestão compartilhada.
Há cerca de 3 meses, o MS publica a portaria n.4.847 que estabelece a descentralização dos serviços do Hospital Federal do Andaraí (HFA) para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Dias mais tarde, o jornal O Globo revela a solução que estaria sendo cogitada, mas ainda em estudo, para as demais cinco unidades. Segundo a matéria, o Hospital dos Servidores do Estado (HSE) iria para a UNIRIO, convertendo-se em um hospital universitário federal e passando a ser gerido pela EBSERH. O Hospital da Lagoa (HFL), por sua vez, seria transferido para a Fiocruz, enquanto o Hospital de Bonsucesso (HGB) passaria a fazer parte do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Finalmente, os hospitais de Ipanema (HFI) e o Cardoso Fontes (HFCF) seriam descentralizados para a Prefeitura do Rio.
As saídas anunciadas têm gerado muita críticas e manifestações contrárias por parte de partidos políticos, sindicatos da área da saúde e servidores vinculados a estes hospitais, que resistem ao cenário de fracionamento das unidades. Persistem até hoje diversas incertezas e apreensões associadas ao desfecho deste processo.
Para refletir sobre o tema, o Observatório convidou a advogada sanitarista, especialista em direito sanitário pela USP e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), Lenir Santos. Na entrevista, ela expressa sua preocupação a respeito do destino de cada um dos hospitais e quais seriam as consequências da possível municipalização ou transferência para outros órgãos federais. Também comenta a situação dos trabalhadores, sugere um modelo de governança para os hospitais e outros caminhos possíveis para a reestruturação dos hospitais com menos travas burocráticas, como os consórcios ou as fundações estatais interfederativas.
Fique com a entrevista completa:
Para começar, gostaria que você avaliasse as mudanças que parecem estar em vista para os hospitais federais: transferi-los para a Prefeitura do Rio, a Ebserh, a Fiocruz e o Grupo Hospitalar Conceição.
Esse é um problema complexo. Qualquer solução para essa questão também é complexa. Na realidade, estamos falando de muitos hospitais e, pela Lei Orgânica da Saúde, é necessário fazer a descentralização. O Ministério da Saúde não deve ser mais o prestador direto de serviços para a população; isso fica a cargo dos estados e municípios.
Há exceções: o Inca e outros institutos nacionais deveriam permanecer no Ministério da Saúde uma vez que eles têm por competência o papel de formular políticas em suas respectivas áreas de atuação. Tirando elas, realmente seria preciso realizar a descentralização.
Isso já foi feito no passado, mas gerou muita confusão na época. O município do Rio de Janeiro reclamava que não recebia os repasses prometidos no acordo, e o Ministério alegava que o município também não cumpria suas obrigações. Com essa situação, que até o Supremo Tribunal Federal julgou como inadequada, tudo acabou voltando ao que era antes.
Desde então, os hospitais ficaram novamente sob responsabilidade do Ministério, mas isso nunca mais funcionou bem. Ficaram vinculadas ao Departamento de Gestão Hospitalar do Estado do Rio de Janeiro (DGH). Isso gerou mais confusão.
Lembro também de uma análise feita pelo Tribunal de Contas do município do Rio de Janeiro em 2016, quando a discussão sobre a transferência dos hospitais para o município voltou novamente. Na época, o Tribunal de Contas realizou um estudo sobre a viabilidade da municipalização das unidades de saúde federais no Rio de Janeiro. Ao final, foi contra essa municipalização, não porque fosse uma má ideia em si, mas devido ao histórico de insucessos no passado e aos custos levantados.
O estudo indicava que os custos para o município seriam muito altos em relação aos recursos que seriam transferidos. O Tribunal de Contas entendeu que os termos do acordo não seriam adequados.
Esse impasse se manteve. Se considerarmos o que dizem tanto a Lei 8080/1990 quanto a Constituição, que estabelecem a descentralização dos serviços de saúde como uma diretriz do SUS, a transferência dos serviços federais para estados e municípios deveria ter acontecido. No entanto, nesse caso, isso não se concretizou.
Antes dos anúncios de transferência, imaginei que alguns hospitais iriam para o estado e outros para os municípios. Estou olhando a questão do ponto de vista da legalidade, que envolve uma alta complexidade devido à quantidade de hospitais e suas origens. Pensei que seria possível criar um consórcio entre os três entes da federação — União, Estado e Município, por meio das secretarias de saúde — para que, por um tempo, gerissem conjuntamente esses hospitais. Esse consórcio poderia funcionar como uma pessoa jurídica com direito privado, o que traria mais agilidade à gestão.
Com o tempo, a gestão poderia ser transferida gradualmente para o estado e o município, à medida que eles se familiarizassem com a administração dessas unidades. Eventualmente, o consórcio poderia ser extinto ou reduzido, deixando apenas o estado e o município responsáveis pela gestão.
Essa foi uma das hipóteses que considerei, mas acredito que o Ministério nunca levou essa ideia em consideração.
O governo parece optar por um fracionamento. Tenho minhas dúvidas sobre isso. As possíveis mudanças (no caso de Bonsucesso, Lagoa e Servidores) não parecem tratar-se de uma verdadeira descentralização, mas do que chamamos, no direito administrativo, de desconcentração. Ou seja, a gestão continuará no âmbito federal.
A questão da descentralização não foi completamente resolvida. Eu entendo que, na prática, esse processo é muito complexo. O município precisa estar preparado para assumir essa responsabilidade. Talvez alguns hospitais devessem ser transferidos para o estado, mas parece que essa possibilidade nem foi considerada. A descentralização da esfera federal para o estado e o município, conforme previsto pela legislação, ainda não foi realizada. Portanto, o problema persiste.
Sobre os hospitais que serão transferidos para a prefeitura, acredito que será necessário construir um convênio entre as partes, pois, em geral, entre entes da federação, é assim que se formalizam esses acordos.
Eles terão que elaborar um bom convênio para definir exatamente o que será transferido e quanto será repassado em termos de recursos. O instrumento jurídico que for estabelecido precisa garantir essas questões, porque, no passado, quando o município devolveu os hospitais, alegou que a União não repassou dinheiro suficiente.
Além de um bom convênio, eles precisarão criar uma comissão de acompanhamento, com representantes de ambos os lados, para analisar diariamente todos os desafios que surgirem. Certamente, haverá problemas diários. Também há a questão da influência política dentro dos hospitais no Rio de Janeiro.
Você pode falar um pouco mais da sua ideia apresentada no artigo que publicou em março, de fazer a transferência dos hospitais a partir de um consórcio?
Acho que seria uma solução interessante para essa situação. O consórcio seria uma pessoa jurídica, podendo ser de direito privado, o que garantiria mais agilidade, inclusive na contratação de funcionários via CLT, evitando o regime estatutário, que é muito mais complexo.
Não teria a mesma agilidade de uma pessoa jurídica totalmente privada e sem fins lucrativos, mas ainda assim seria mais rápido do que as estruturas tradicionais. Existe o ditado que usamos no direito administrativo: tudo o que o Estado toca, ele contamina. Então, é necessária uma lei para criar algo assim, mas, sem dúvida, seria uma solução mais ágil.
Acredito que seria uma boa alternativa, já que os três entes — União, estado e município — seriam responsáveis e haveria uma pessoa jurídica distinta. Poderiam começar transferindo os hospitais mais importantes e, gradualmente, conforme o município fosse assumindo essa ou aquela unidade, o consórcio poderia ser reduzido até ser desmanchado. Afinal, consórcios podem ser criados e dissolvidos.
Os três entes poderiam firmar um acordo político, definindo um prazo de dez anos, por exemplo, para que o consórcio fosse dissolvido, e, ao final desse período, o Estado e o Município estariam com suas respectivas partes.
No artigo, você também menciona a criação de uma fundação estatal interfederativa.
Sim, seria outra opção. A diferença é que a fundação seria algo mais duradouro, mais perene.
O consórcio seria uma solução temporária, com o objetivo de resolver a situação dentro desse período e, depois, dissolvê-lo. Já a fundação seria uma estrutura permanente. Poderíamos criar uma fundação interfederativa, com a participação dos três entes — União, estado e município – que seriam os instituidores da fundação, e, por meio dela, gerenciariam esses hospitais.
Essa também seria uma solução viável. Uma fundação pode ter personalidade jurídica de direito privado, o que traz algumas vantagens – mais flexibilidade na contratação de pessoal e uma contabilidade mais simples, por estar fora do orçamento público tradicional. Isso tornaria a gestão menos burocrática.
Portanto, essa fundação poderia ser uma boa solução, especialmente considerando que são muitos hospitais e que, em alguns casos, nem o município nem o estado têm condições de assumir todas as unidades. Assim, uma fundação interfederativa, criada pelos três entes da federação, poderia gerenciar esses hospitais de forma mais perene.
Essa seria uma solução de longo prazo. Já o consórcio seria uma experiência temporária, onde os três entes se uniriam para compartilhar a responsabilidade. Eles teriam um prazo para gerenciar os hospitais juntos e, ao final desse período, poderiam dissolver o consórcio, a menos que tivesse tanto sucesso que decidissem mantê-lo.
Em algumas entrevistas, Nísia Trindade e Arthur Chioro, presidente da Ebserh, falaram sobre implantar um sistema de gestão compartilhada das unidades federais. Quais seriam as maneiras de fazer isso?
Acredito que, quando eles mencionaram a gestão compartilhada, estavam se referindo ao que foi proposto no caso dos três hospitais (HSE, HF Lagoa E HF Bonsucesso) que permanecerão no âmbito federal. Na prática, é uma divisão de tarefas.
Isso, no entanto, não é descentralização. A única descentralização parece ser a transferência de três hospitais para o município. O que está sendo feito é o que chamamos de desconcentração, um termo que não é muito técnico no campo jurídico. Basicamente, é quando você transfere responsabilidades dentro do mesmo ente federativo, como quando você retira uma função da administração direta e coloca em uma autarquia.
Essa é a diferença: a descentralização ocorre quando se transfere de um ente federativo para outro. Já a desconcentração acontece dentro do próprio ente, sem sair da esfera federal.
Sobre os modelos de gestão: nos últimos anos temos visto a proliferação de diferentes arranjos para a gestão hospitalar no SUS, tanto públicos quanto privados. Como você vê essa discussão?
Olha, vou te dizer que é sempre um nó. A forma como gerimos hospitais atualmente não é adequada para a complexidade dessa gestão. O sistema é muito burocrático, muito difícil, e realmente precisa de mais agilidade. Por isso, as parcerias acabam ajudando bastante.
Na época em que José Gomes Temporão era ministro da Saúde, entre 2007 e 2011, nos debruçamos sobre o modelo da Fundação Estatal. A ideia era uma fundação pública com direito privado, na qual o poder público é o instituidor, mas com mais flexibilidade. É algo parecido com uma empresa pública.
A ideia de uma empresa pública com mais agilidade é semelhante ao que estamos discutindo. Eu acredito que a legislação aplicada às empresas públicas, especialmente no que diz respeito às licitações, também deveria se aplicar às fundações públicas com direito privado.
Essas duas entidades se alinham bastante. A principal diferença entre uma fundação e uma empresa pública, além dos fins econômicos, é que qualquer superávit de uma fundação deve ser obrigatoriamente reinvestido. Já uma empresa pública pode distribuir lucros. Por isso, enquanto chamamos os responsáveis por uma empresa pública de "donos", a fundação não tem essa mesma lógica.
Eu entendo que a legislação deveria ser a mesma, já que ambas operam sob um regime de direito privado, com poucos aspectos de direito público. Quando defendemos isso, houve muita confusão, mas, na prática, seria uma boa solução para a questão que enfrentamos.
Hoje, 85% dos serviços prestados pelo SUS são fornecidos por entidades privadas. O regime de complementaridade do SUS acabou se invertendo. Originalmente, a complementaridade deveria suprir as insuficiências dos serviços públicos, ou seja, o setor privado só entraria em cena quando os serviços públicos fossem insuficientes.
No entanto, a realidade que temos agora é que a parceria com o setor privado não é mais uma exceção, mas sim uma regra. Essa inversão vai contra a ideia de que o setor privado deveria complementar menos de 50% dos serviços, como imaginávamos inicialmente.
Atualmente, 85% dos serviços do SUS são prestados por entidades privadas. Isso inclui todos os regimes, como as parcerias com as Organizações Sociais (OS), a contratação de leitos, serviços de hemodiálise, entre outros pacotes que são terceirizados, ou seja, que não estão diretamente sob a gestão do poder público.
Eu sempre fico preocupada com essa questão. Embora eu concorde que certas amarras na administração pública precisem ser flexibilizadas, é fundamental que realmente se faça algo para desamarrar a burocracia, em vez de apenas falar sobre o problema sem agir.
Nos anos 1990, quando estávamos na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, vivíamos a transição do convênio SUDS, que era um pré-SUS, para o SUS, que havia sido formalizado pela Constituição e pela lei de 1990. Naquela época, discutimos com juristas a criação de uma nova figura jurídica, que chamamos de "Estabelecimento Hospitalar Autônomo".
A ideia era que essa entidade tivesse uma grande autonomia, similar ao modelo que mais tarde inspirou a criação das fundações, com maior liberdade de ação. Esse hospital autônomo seria um prestador de serviço para o Estado, mas operaria com a agilidade do setor privado, sob um regime de direito privado. O Estado manteria o controle, mas a entidade teria mais flexibilidade.
Infelizmente, essa proposta não avançou, era um bom modelo. Isso foi lá por volta de 1991 ou 1992. Se tivesse sido implementada, muitas coisas não teriam se desviado como acabaram acontecendo. Teríamos, dentro do Estado, uma entidade com mais agilidade, sem tantas amarras burocráticas. O que me preocupa hoje é essa inversão das taxas. Com 85% dos serviços sendo prestados pelo setor privado, isso acaba, fatalmente, influenciando a política pública de saúde.
Imagine o volume de dinheiro envolvido. Só uma OS aqui no Estado de São Paulo, em 2022, recebeu 7 bilhões de reais. Com essa quantia, começa a haver influência no mercado, que se organiza em torno desse dinheiro, oferecendo serviços. Isso acaba impactando diretamente o modelo assistencial do SUS.
O modelo do SUS é focado em prevenir e proteger a saúde, além de promover ações que previnam riscos de doenças, muito ligado à vigilância sanitária e à atenção primária. No entanto, estamos nos aproximando de um modelo hospitalocêntrico, similar ao americano, que é altamente tecnológico, caro, e insustentável para um sistema de saúde universal.
Um sistema universal precisa ser sóbrio, rígido, com muito controle e racionalidade nas decisões sobre o que será incorporado. O setor privado, por outro lado, pode acabar determinando, em grande parte, o que será incorporado ao SUS. Já vemos isso um pouco com a judicialização: as grandes corporações influenciam o que deve ou não ser oferecido pelo sistema.
Isso enfraquece a capacidade de o SUS ditar sua própria política pública, que acaba sendo moldada pelas demandas do setor privado. Essa é uma das minhas grandes preocupações, especialmente agora, com o capital estrangeiro fluindo livremente no país, sem qualquer regulamentação. Não há um controle rígido sobre esse crescimento.
Atualmente, cerca de 5,7% do PIB é destinado ao setor privado de saúde, enquanto apenas 4% vai para o público. Essa inversão de prioridades é muito perigosa para um país que tem um sistema de saúde universal como o SUS.
Pensando nesses modelos, você acredita que eles deixaram de atender às necessidades do SUS em termos de gestão hospitalar? Acha que precisamos de novos modelos, ou de alternativas?
Eu acredito que os modelos que temos hoje, como as parcerias em sentido amplo, mas também as OSs, o OSCIP (Organização da sociedade civil de interesse público), e outros, proliferaram de tal forma no país que hoje é difícil encontrar um município que não tenha seus serviços hospitalares ou ambulatoriais geridos por uma entidade privada, geralmente uma OS.
Acredito que seja necessário repensar o modelo de OS, buscando aperfeiçoá-lo. E, para isso, seria importante ter uma maior presença do Estado dentro desses arranjos. No modelo original federal, o Estado está presente no Conselho de Administração, mesmo que com participação minoritária (49%), mas ele tem um papel.
Em muitos dos modelos que se espalharam por estados e municípios, o Estado está ausente. Talvez seja o caso de repensar isso, buscando algo mais híbrido, com participação tanto do Estado quanto do setor privado.
O privado, nesse sentido, pode trazer mais agilidade e inovação, enquanto a administração pública, por natureza, é mais rígida. Acredito que um meio termo poderia ser mais adequado. No entanto, do jeito que as coisas estão atualmente, vejo muitos problemas.
Por outro lado, alguns atores políticos, especialmente sindicatos e trabalhadores da área, enxergam esses movimentos como mais um passo em direção à privatização do SUS. Como você interpreta essa discussão?
Eu vejo alguns problemas com essa questão. Ouço certas propostas que, para mim, são incompatíveis com o nosso modelo federativo, como a ideia de uma carreira única no SUS.
No Brasil, por tratar-se de um Estado federado, não pode existir uma carreira única que englobe tudo. A carreira será sempre federal, estadual ou municipal. Não existe uma carreira "nacional" que una todos esses níveis. Se fossemos por esse caminho, estaríamos centralizando tudo no âmbito federal, o que já experimentamos no passado e não funcionou. Isso seria inviável.
Também escuto argumentos de que todos os trabalhadores do SUS deveriam ser estatutários. Discordo disso. Embora eu seja contrária à privatização do SUS, acredito que exigir que todos sejam estatutários não é a solução.
Participei recentemente de um seminário sobre a reforma tributária, que ocorreu em Brasília. Um representante do Ministério da Fazenda fez uma apresentação tecnicamente excelente, sem reparos. Em certo momento, ele mencionou a possibilidade de impostos mais baixos para medicamentos e produtos de saúde.
Eu fiz um questionamento. Falei que concordava, caso isso se aplicasse ao setor público, mas discordava se fosse um benefício ao setor privado, pois isso incentivaria o seu crescimento. Ele respondeu que isso seria bom, pois aumentaria a renda e mais pessoas poderiam ter planos de saúde.
Nesse momento, uma pesquisadora que estava presente fez uma intervenção, lembrando que, nos países ricos, como Inglaterra e Espanha, o objetivo é sempre ter um bom sistema público de saúde, e não incentivar o setor privado.
Ninguém quer recorrer ao sistema privado em países com sistemas universais de saúde. Defender isso vai contra os princípios do SUS. Em países com sistemas universais de saúde, o setor privado é fortemente regulado, e essa relação sempre gera tensão. No Canadá, por exemplo, onde há um sistema público robusto, o setor privado não pode atuar nas mesmas áreas. O Canadá é extremamente rigoroso nessa questão.
Lá, o público domina, enquanto o privado é apenas um pequeno complemento, com clínicas e consultórios. Não existem grandes hospitais privados no Reino Unido ou na França. A ideia de expandir o privado em um país com um sistema universal como o nosso é uma inversão dos princípios que deveríamos seguir.
Estamos expandindo o setor privado, e, com essa proposta de tributação menor para a saúde, eu questionei o porquê de isso não ser focado no setor público. A ideia de reduzir impostos é boa, mas deveria ser voltada para fortalecer o sistema público, que é universal, e trazer mais pessoas para o SUS. O setor público precisa de mais recursos para manter seu sistema. É realmente complicado manter o SUS vivo e funcionando adequadamente.
E como ficam os trabalhadores quando ocorre essa transição?
Geralmente, os trabalhadores são federais. Então, nesse caso, o governo faz uma cessão. Ele cede o pessoal, os bens e os serviços para o ente que assume, seja a prefeitura, o estado ou outro.
Os trabalhadores federais não perdem o vínculo. Continuam como funcionários federais, mas são cedidos para a prefeitura, por exemplo. Assim, eles permanecem com seus direitos de servidores federais, mesmo atuando em outra esfera. Já os novos trabalhadores, que são contratados após a transição, passam a ser contratados pela entidade que está gerindo, como a Ebserh, por exemplo.
Os funcionários federais não perdem o vínculo com a União, mas o que acontece é que, muitas vezes, suas carreiras ficam congeladas. Isso pode gerar problemas, especialmente quando chega a hora da aposentadoria. O trabalhador, durante o período de cessão, pode até receber outro salário ou gratificações, mas quando retorna ao serviço federal para se aposentar, surgem complicações.
Um dos grandes problemas dos hospitais federais é a carência de pessoal técnico e administrativo. A reposição desse pessoal tem sido feita predominantemente por meio de contratos temporários de trabalho. Por que a contratação está sendo feita dessa forma? Por que é difícil contratar via CLT ou por concurso?
Porque é necessário abrir concurso público. No âmbito federal, as contratações devem ser feitas por meio de concurso. Como os hospitais ainda estão sob a gestão federal e não foram transferidos, o governo precisa realizar concursos públicos. No entanto, faz muito tempo que não se abre concursos regulares, e também houve muitos anos sem reajustes salariais.
Agora, por exemplo, com a gestão da Ebserh e a falta de funcionários, eles finalmente vão abrir concursos, já que a Ebserh é uma empresa pública, independente. Na Ebserh, os funcionários são contratados sob o regime CLT.
A Ebserh contrata de acordo com o regime da empresa pública, que é o mesmo que rege as fundações estatais: o regime CLT. Eu sempre digo que, quando falamos de regime jurídico único, o verdadeiro regime jurídico único no Brasil é o CLT. A maioria das pessoas no país é contratada sob esse regime, enquanto o número de servidores públicos é bem menor. Não devemos ter receio do regime CLT.
Se você chegar na Petrobras, por exemplo, verá que todo mundo é CLT. No Banco do Brasil também. Se disser que todos vão virar estatutários e perder o Fundo de Garantia, muita gente não vai querer.
Nos hospitais federais, o fato de os cargos diretivos serem de indicação política traz muitos problemas de gestão, corrupção etc. Como isso pode ser resolvido para garantir que gerentes qualificados assumam essas posições?
Essa questão está diretamente ligada ao campo político. Para mudar isso, seria necessário ter governabilidade e força para não permitir esse tipo de interferência. Com a política tão complexa como está hoje, isso se torna um grande desafio.
Uma solução seria reduzir o número de cargos de confiança. Se a maior parte dos cargos fosse permanente, com funcionários contratados por concurso público, mesmo no regime celetista, isso ajudaria.
O ideal seria que, em um quadro de, digamos, 50 pessoas, 45 fossem permanentes e apenas 5 de confiança. Atualmente, muitas vezes acontece o contrário: quando um dirigente sai, ele leva todo mundo com ele, deixando o quadro vazio, e entra uma equipe completamente nova. Isso afeta diversos setores, inclusive no Ministério da Saúde.
E como começar a resolver essa situação? Estabelecendo requisitos ou fazendo concurso público para esses cargos?
Sim, é possível estabelecer critérios de competência ou fazer concursos públicos para preencher esses cargos, o que seria um grande passo para reduzir as indicações políticas e garantir uma gestão mais técnica e qualificada.
Acredito que seja necessário diminuir o número de cargos de confiança, o que chamamos de cargos de livre nomeação e exoneração. Precisaríamos ter menos dessas posições e contar com mais profissionais técnicos permanentes.
O que deveria acontecer, e que parece ser o caso em instituições como o BNDES e o Banco Central, é que, quando há mudanças de gestão, não vemos uma troca completa de funcionários. Nesses casos, só as posições de liderança são alteradas. O mesmo vale para o Banco do Brasil e a Petrobras: quando se mexe na cúpula, não quer dizer que todos os geólogos ou técnicos, por exemplo, são substituídos. Isso não acontece.
Esse deveria ser o foco: ser mais criterioso sobre quantas pessoas técnicas permanentes são necessárias e quantas podem ser de confiança para cargos de direção. Atualmente, vemos uma inversão: há muitos cargos de confiança e poucos técnicos permanentes.
Em seu artigo já citado, você chama a atenção para a necessidade de que estas unidades passem a ser conduzidas sob um novo sistema de governança, envolvendo a participação de diversos entes e atores implicados. Você pode nos falar um pouco mais a esse respeito? Como incorporar a participação de trabalhadores/sociedade?
Muitas vezes pode não ser possível que o ente estadual ou municipal esteja em condições de receber os serviços desses órgãos federais (pessoal, bens etc). Por isso seria necessário repensar como fazer isto respeitando as estruturas estadual e municipal de gestão.
No tocante à participação da sociedade na gestão, ela deve exercer o papel de controle social previsto na própria Constituição e lei. A comunidade não deve “gerir” entidades públicas, mas sim participar na formulação de suas políticas, acompanhar a sua execução, fiscalizar a conformidade com o plano de saúde, orçamento etc.
Os trabalhadores desses hospitais também não devem atuar como gestores, mas ter assento nos seus órgãos de administração, como exige a própria lei das estatais, que prevê a presença de um trabalhador no conselho de administração.
É importante que o órgão de direção superior, da alta administração, tenha um representante dos seus trabalhadores. Assim, ele, junto com os demais membros (que representam o governo e a sociedade), também estará participando da alta administração da entidade pública, na forma da lei.
Penso que não há outra forma de descentralizar serviços federais para os entes municipal/estadual sem transpassar esses serviços; ou sem geri-los no formato de uma cogestão, ou outro modelo assemelhado, unindo todos numa solução descentralizada.