Autoras: Ana Angélica Soares e Simone Ferreira (OPGH/Fiocruz)

Data da publicação: 7 de dezembro de 2020

Nove meses desde a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no país, o Brasil ultrapassa 177 mil mortes e acumula mais de 6 milhões de diagnósticos da doença. Fora a discussão sobre um repique ou nova onda pandêmica – já que o país não apresentou, em nenhum momento, queda sustentada no contágio – diversas regiões do país enfrentam novamente o problema da escassez de leitos nas redes pública e privada.

Inicialmente considerados uma solução rápida e eficiente diante da ameaça de esgotamento dos sistemas de saúde, os hospitais de campanha muitas vezes acabaram virando um problema. Onde e como esta solução foi adotada no país? Que situações devem orientar sua adoção? Que experiência merece ser observada? São estas as reflexões que o Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH/Fiocruz) propõe a seguir.

Os hospitais de campanha no mundo

De acordo com definição lançada em 2003 pela OMS, o hospital de campanha é uma unidade de saúde móvel, independente e autossuficiente, capaz de rápida implantação, expansão ou contração para atender aos requisitos de emergência imediatos, por um período definido. A sua implantação deve obedecer a três critérios: (a) o reconhecimento formal de uma situação de emergência; (b) o funcionamento integrado dos mesmos ao sistema local de serviços de saúde; e (c) a definição clara dos papéis e responsabilidades no que tange à sua instalação, operação e sustentação. Portanto, os hospitais de campanha são unidades de saúde temporárias para assistência hospitalar e compõem uma das estratégias para ampliação da capacidade de atendimento aos casos de COVID-19 – assim como a expansão de leitos em unidades próprias, a contratação e requisição de leitos privados e a suspensão de internações eletivas.

Países com sistemas de saúde estruturados e universais como França, Espanha, Itália, Reino Unido e Canadá tiveram que recorrer a eles. Outras localidades receberam ainda hospitais de campanha humanitários, como a África do Sul (que teve um hospital montado pela organização Médico Sem Fronteiras) e a região conflagrada de Gaza, na Palestina, que não conta sequer com um sistema de saúde. Países asiáticos mais modestos como Vietnã e Tailândia também montaram suas estruturas, e a China (onde a pandemia começou) foi a primeira a construir, em tempo recorde, hospitais temporários que deveriam receber milhares de pessoas. Em junho, a Índia começou a construir a maior estrutura do mundo, com 10 mil leitos.

No Brasil, também não foi diferente. No entanto, o plano de contingência do Ministério da Saúde para COVID-19 publicado em fevereiro não contempla hospitais de campanha, apontando para a possibilidade de adaptação, ampliação e contratação de leitos como medidas para garantir o atendimento hospitalar aos doentes e redução dos  óbitos pela doença. Assim, cabe a pergunta: afinal, o que levou estados e municípios a adotarem tal estratégia?

A pergunta ganha pertinência sobretudo quando vemos que a falta de planejamento na adoção dos hospitais de campanha levou a atrasos, à não-execução de unidades previstas, ao fechamento de outras que não chegaram mesmo a ser inauguradas ou ainda à baixa ocupação das que permanecem abertas – como foram os casos dos hospitais de campanha dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A dificuldade de planejamento para a ampliação da oferta de leitos por meio de hospitais de campanha foi agravada, ainda, pela ausência do Ministério da Saúde da sua função de coordenar o enfrentamento à pandemia – ao não centralizar, por exemplo, a compra de insumos estratégicos e ao não definir os critérios técnicos para a implantação dos hospitais de campanha no início da pandemia. A publicação de portaria específica sobre hospitais de campanha veio somente em 15 de junho. Mesmo tardio, o documento traz elementos que merecem atenção.

Orientações do governo brasileiro

A portaria Nº 1.514 de 15 de junho de 2020 estabelece que a estrutura de campanha está voltada à internação de pacientes com sintomas respiratórios de baixa e média complexidade: leitos de internação clínica e leitos de suporte ventilatório pulmonar. Este último se distingue do leito de UTI, pois são leitos mais simples para pacientes que precisam de suporte de oxigênio, mas não estão em estado grave. Já os casos graves devem ser encaminhados para as UTIs hospitalares. Além disso, é importante observar o tipo de estrutura adotada. A orientação do CNES para cadastro dos hospitais de campanha distingue as novas estruturas daquelas que se caracterizam como ampliação de estabelecimento de saúde existente – como foi o caso da Fiocruz, que expandiu leitos de UTI-SRAG/COVID-19 associados ao Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas.

Apesar de amplamente difundida, a alternativa da expansão da oferta na modalidade hospitais de campanha também foi muito questionada. Na Nota Técnica Nº 24, de 12 de maio de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se posicionou contrariamente à adoção prioritária dos hospitais de campanha, indicando antes a otimização dos recursos existentes. Entre eles, a ampliação dentro das estruturas próprias, novos hospitais e a contratação/requisição de leitos privados. A prioridade dada pelo CNJ foi racionalizar a capacidade instalada existente e o investimento em recursos de saúde que ficariam para a população após a pandemia. Na visão do médico sanitarista Gonçalo Vecina Neto, a relação custo/benefício dos hospitais de campanha não compensa. “Custa caro levantar, é inadequado para operar, sobra depois e não tem o que fazer com aquilo”, disse Vecina em entrevista no mês de maio. 

O desafio da expansão de leitos na pandemia

A demanda por leitos de cuidados intensivos e o longo tempo de internação marcaram rapidamente a necessidade de uma resposta estrutural à pandemia. Estudo apresentado pela Fiocruz afirma que mais de 90% dos municípios no país não possuía, em fevereiro, capacidade mínima para atendimento aos casos graves de COVID-19. Também foi possível observar um incremento importante na rede de serviços de saúde, entre prestadores públicos e privados.

Comparando os dados entre os meses de janeiro e setembro deste ano, observamos um aumento de 84% na oferta de leitos complementares, considerados aqui somente os leitos de Suporte Ventilatório Pulmonar - COVID-19 adulto, leitos de UTI Adulto e UTI II Adulto-Síndrome Resp. Aguda Grave (SRAG)-COVID-19 (Tabela 1).

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Os leitos complementares disponíveis ao SUS tiveram um aumento de 63%, porém observa-se uma redução da oferta entre os meses de junho e setembro, de maneira mais significativa nas unidades públicas (Tabela 2). O crescimento da oferta se mantém nas unidades privadas sem fins lucrativos, contratadas para complementar a oferta de leitos SUS.


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Em dezembro, antes da pandemia, a disponibilidade de leitos de internação SUS por 1.000 habitantes no Brasil era de 1,4. Em junho, quando houve um aumento expressivo de leitos, não ultrapassamos o valor de 1,5. Para os leitos de UTI, em dezembro, havia 2,2 para cada 10.000 habitantes; em junho, chegamos em 3,2 – valores ainda muitos baixos se considerarmos as inúmeros casos relatados de desassistência, o tempo em fila para internações e as mortes daqueles que não conseguiram acessar o leito. Estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro indica que 1.891 pessoas foram a óbito enquanto aguardavam transferência para o leito adequado ou durante o transporte.

A pandemia pressiona o cenário já dramático do acesso aos serviços hospitalares: as internações eletivas continuarão na fila à espera de um leito, somadas às demandas programadas de internação e ainda aquelas decorrentes da infecção por Sars-Cov-02.

A participação dos hospitais de campanha não foi significativa (Tabela 3) na ampliação da oferta de leitos no país. O pico do crescimento ocorreu no mês de junho com 1.848 leitos, já em agosto observamos uma retração chegando a 1.484 leitos. Em junho, os leitos abertos em hospitais de campanha representavam 6,2% da expansão:  

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Os leitos de internação tiveram um aumento de 7% entre os meses de janeiro e agosto deste ano, os leitos em hospitais de campanha representaram 36% deste aumento e o mês de agosto apresentou uma redução de 4% em relação ao mês de junho.

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Até o mês de agosto, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foram os que mais abriram leitos em hospitais de campanha. Tomando como referência o mês de junho, São Paulo abriu 4.187 leitos de internação e 440 de UTI. O estado do Rio de Janeiro abriu 1.262 leitos de internação e 600 de UTI. Não há dúvidas que a oferta de leitos de UTI é determinante para o desfecho dos casos graves de infecção pelo novo coronavírus. O estado do Rio de Janeiro dispunha, em dezembro de 2019, de 35 leitos de UTI para cada 100 mil habitantes, incluindo a oferta pública e privada. Apenas o Distrito Federal apresentava um valor maior, com 42 leitos para 100 mil habitantes. O estado do Rio em junho de 2020 tinha 3.005 leitos de UTI a mais que em janeiro do mesmo ano, sendo que a estrutura de campanha comportou 20% deste aumento, com 600 leitos. Destes, 209 já foram fechados. A média nacional para a ampliação de UTIs em hospitais de campanha, todavia, foi de aproximadamente 7%. Os estados do Acre, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Tocantins não abriram hospitais de campanha. Os estados do Amapá, Mato Grosso, Piauí e Sergipe não utilizaram a estrutura de campanha para a abertura de leitos de UTI.

O Rio de Janeiro não inaugurou os hospitais de campanha de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Nova Friburgo, e as unidades de Campos dos Goytacazes e Casemiro de Abreu foram abandonadas na fase de obras. No dia 17 de julho, o MPRJ e a defensoria pública do Estado precisaram intervir pela manutenção das atividades do hospital de campanha do Maracanã e de São Gonçalo. Os hospitais de campanha, contudo, eram apenas uma das estratégias de ampliação de leitos elencadas no plano de contingência da SES/RJ, que previa ainda a utilização de leitos em unidades hospitalares e a suspensão de cirurgias eletivas, abertura de leitos em hospitais com capacidade ociosa e a instalação de hospital de campanha da SES, do Exército e da Aeronáutica. Não figurava entre as opções a contratação de leitos existentes na rede privada, embora, em dezembro de 2019, 67% do total dos leitos de UTI existentes no estado estivessem na esfera privada e a população coberta por planos de saúde correspondesse a 28% da população.

Experiências de expansão da capacidade de atendimento

De fato, hospitais de campanha não são a única opção para ampliação emergencial de leitos – e nem sempre são as melhores. O governo do Maranhão preferiu investir em estruturas permanentes e que ficassem como legado pós-pandemia, montando hospitais de campanha somente quando não havia outra solução viável ou por meio do investimento direto de empresas privadas –  de forma que o estado só fez o hospital de campanha da capital, São Luís, enquanto outros dois foram construídos pelas companhias Vale e Eneva. Outra das apostas do Maranhão foi requisitar 40 leitos (20 de terapia intensiva e 20 clínicos) na cidades de São Luís, São José do Ribamar, Paço do Lumiar, Raposa e Imperatriz, que deveriam ser indenizados de acordo com a tabela GEAP.

O secretário de saúde do estado e atual presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Carlos Lula, comenta que o Maranhão decidiu requisitar leitos privados antes de deixar a capacidade da rede pública se esgotar. “Quando vimos que a rede pública podia de fato entrar em colapso, fizemos uma reunião com o sindicato do setor privado e logo decidimos fazer o decreto de requisição dos leitos”, explica. Um dos indicadores que baseou a decisão foi a manutenção, por dias seguidos, de 100% de ocupação dos leitos públicos destinados aos pacientes de COVID-19. A decisão de requisitar leitos privados tampouco foi a mais simples, já que, além de ter que enfrentar forte resistência do setor, o Maranhão conta com menos leitos em hospitais particulares do que no SUS – o oposto do que acontece na maior parte do país. Tomadas em conjunto, as medidas de ampliação da capacidade hospitalar garantiram mais de 1500 leitos de janeiro a junho, fazendo com que o estado passasse de uma oferta total de 15.008 para 16.528 leitos, públicos e privados.

O professor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) Daniel Soranz vê o uso de hospitais de campanha na pandemia de COVID-19 com ressalvas. Segundo ele, os hospitais de campanha devem ser utilizados com tendas de apoio voltadas para a triagem de pacientes e para o atendimento de baixa complexidade. “Cidades como Maricá, no estado do Rio de Janeiro, e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, criaram polos de atendimento nos moldes do que foi feito nas epidemias de Dengue em 2008, H1N1 em 2009 e na mais recente, de Zika”. Soranz ressalta que, no caso da alta complexidade, a performance dos hospitais de campanha é discutível. “O desempenho clínico de um hospital é um índice complexo. Contam a estrutura física, o entrosamento da equipe, logística, abastecimento, entre outros fatores”, enumera. “Nos hospitais de campanha, eles saem prejudicados”, acredita.  No anúncio das medidas de combate à pandemia na cidade do Rio, Soranz – que será secretário da pasta da Saúde no novo governo Paes – defende a reabertura de cerca de 1,5 mil leitos da rede SUS que estão fechados, mas ainda não prevê o fechamento do hospital de campanha do Riocentro.

Já a experiência de hospitais de campanha na capital paulista foi pioneira no país, começando ainda nas primeiras semanas de abril. “O início das suas operações representou um marco importante na resposta para o enfrentamento da COVID-19 no país, cuja missão era desafogar o sistema de saúde, servindo de exemplo a iniciativas semelhantes que surgiriam em outros estados”, afirmou a Secretaria de Saúde em nota ao OPGH. No hospital do Pacaembu, por exemplo, a taxa de sobrevida foi de 99,8%. Com a desaceleração da pandemia na cidade, a unidade do Pacaembu foi desativada em julho, e somente uma ala do Anhembi continuou aberta depois do dia 1º de agosto. Os equipamentos utilizados foram doados para hospitais municipais referência em tratamento de COVID-19 nos distritos com mais óbitos pela doença. Agora, a cidade enfrenta uma reaceleração da pandemia, com retrocesso nas fases de abertura e saturação da rede hospitalar privada.

De qualquer maneira, para Soranz, a falta de coordenação do governo federal é um ponto sensível. “Esta é a primeira epidemia em que o Ministério de Saúde não é o protagonista”, lembra. Sem parâmetros unificados, a montagem de hospitais de campanha gerou uma corrida entre os entes federados, o que também acarretou desperdício de recursos e desabastecimento. “Faltou uma definição clara sobre o que fazer. Além disso, o governo não definiu os insumos estratégicos para enfrentamento da pandemia – o que teria garantido uma compra centralizada e a correta distribuição entre os estados e municípios”. O exemplo do Rio de Janeiro ilustra bem os tipos de problema que podem surgir da falta de planejamento e de critérios claros para adoção dessa alternativa para ampliar leitos. Tanto que, para Soranz, a decisão do estado do Rio de fechar os hospitais de campanha já inaugurados e não abrir os demais que estavam previstos foi acertada. “Erros de planejamento acontecem, mas insistir no erro seria mais grave”, afirma. 

Uma solução que pode ser melhor implementada

“O colapso de leitos e recursos hospitalares era esperado e foi anunciado logo no início da pandemia de COVID-19 – tanto que os hospitais de campanha fazem parte das recomendações da OMS e foram adotados como parte das soluções da expansão da capacidade de atendimento em diversos países”, alerta o professor da ENSP/Fiocruz Francisco Braga. Ele avalia que houve pelo menos quatro situações associadas à instalação dos hospitais de campanha que interferiram nos resultados alcançados pelos sistemas de locais de saúde: a falta de coordenação de ações por parte do Ministério da Saúde – que levou estados e municípios a tomarem suas decisões quanto à expansão da oferta hospitalar sem parâmetros técnicos suficientes; a incerteza associada à propagação da pandemia, que contribuiu para a dificuldade de planejar a expansão e fez com que a instalação de hospitais de campanha tenha sido tomada como primeira alternativa para a ampliação do parque hospitalar; o mau acompanhamento do cronograma de entrega da abertura dos hospitais de campanha, com previsões pouco realistas e dissociadas dos recursos que precisam acompanhar a abertura de um leito; e, por fim, a regulação e gestão inadequada dos leitos disponíveis – com pessoas em fila aguardando transferência enquanto havia leitos livres.

Apesar do agravamento da pandemia e da tendência nacional do aumento de casos confirmados e de óbitos, a insistência na flexibilização das regras adotadas em relação ao uso de máscara, distanciamento social e no funcionamento integral do comércio, bares e restaurantes tem gerado pressão sobre os sistemas de saúde. Com isso, as filas de espera para internação em leitos de cuidado intensivo, mortes e os hospitais de campanha voltaram à cena. É urgente que o poder público tome as medidas já conhecidas para conter o avanço da pandemia – que, com a mudança nas gestões municipais e financiamento insuficiente, pode ainda se agravar, com o risco de descontinuidade de serviços.