A investida de empresas como a Trigger Participações e seu fundo de investimento Humana Magna não é novidade na história recente do setor hospitalar brasileiro. Em um contexto de retração econômica, é fundamental para estas empresas que demonstrem que ainda são rentáveis, lucrativas, inovadoras, independentemente se essas qualidades se expressam em fatos ou não. Cria-se, assim, o duplo discurso do setor: por um lado, uma vitrine chamativa, embelezada e, acima de tudo, lucrativa para o mercado; por outro, aos pés dos ouvidos de governantes, ministros e parlamentares, uma empresa que “sofre” com os efeitos da crise, defendendo ainda mais fortemente novas linhas de crédito a partir de bancos públicos, novos recursos fiscais e aprofundamento da terceirização encarnada nos não tão novos modelos de gestão de unidades de saúde. O duplo discurso tem seus resultados, apresentando movimentos de clara expansão do setor, como o forte e sustentado processo de aquisição de hospitais pela Rede D’Or em diversos estados brasileiros nos últimos anos. Vai até mesmo além, como com a compra pela Amil do Hospital Samaritano de São Paulo, um hospital filantrópico que, por definição, apresenta uma série de isenções e incentivos fiscais baseada em sua característica primordial de não ser lucrativo.
A baixa complexidade, enquanto foco, também não é algo novo: há pelo menos um ano cresce o número de planos de saúde e hospitais privados que contratam médicos de família e outros profissionais da atenção primária para atuar em seus quadros. O contexto mundial de desospitalização abre novas possibilidades de investimento e aglutinação pelo mercado, porém os investimentos mais recentes mantêm os mesmos parâmetros que os investimentos mais tradicionais em hospitais de média e alta complexidade: concentração de recursos em regiões e cidades de maior renda, com uma população que já apresenta melhores condições de saúde. Perdem-se, assim, as premissas universalistas, de cooperação e de atuação em contextos de populações vulneráveis que caracterizam de forma importante o processo internacional de desospitalização. Para além disso, cria possibilidades futuras de investimentos públicos em empresas privadas nesse setor em detrimento da estruturação de rede própria, podendo assim competir diretamente por recursos públicos junto a outros modelos de gestão primordialmente públicos.
Não há contradição: a alavancagem dessas empresas a partir de estratégias de extração e competição com recursos públicos explica o duplo discurso. Tem-se um plano perfeito, com o crescimento do setor em plena crise econômica acontecendo ao mesmo tempo em que se cobra de governos incentivos fiscais e de crédito, utilizando estes mesmos incentivos para reproduzir seu modelo junto ao mercado. Um plano perfeito para um sistema que caminha a passos largos rumo à desregulação e à transformação de um projeto universal e estatal de saúde em linha auxiliar de crédito, profissionais e incentivos para grupos econômicos privados.
Autores
Milton Santos - Faculdade de Medicina UFRJ
Artur Monte Cardoso - IESC UFRJ
Claudia Travassos - ICICT Fiocruz
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