Juliana Machado, Ceres Albuquerque e Francisco Braga
Publicado em 05/06/2024
Apresentação
A oferta de leitos hospitalares tem sido objeto de discussões em diversos países. As pressões econômicas sob os sistemas nacionais de saúde ao longo das últimas décadas têm dado origem a uma série de medidas provocado uma redução substantiva do número de leitos hospitalares. Além das mudanças que refletiram uma série de fatores socioeconômicos, demográficos e políticos, a pandemia pelo Covid-19 a partir de 2019 também afetou drasticamente os sistemas de saúde, impondo ampla revisão do modelo assistencial e maior atenção sobre a assistência à saúde de maior complexidade.
Neste breve estudo, buscou-se descrever a variação na oferta de leitos de internação no país, em especial quanto à sua disponibilidade para a população não coberta por planos privados de saúde com segmentação hospitalar, e ainda comparando-se com aqueles destinados aos beneficiários de planos privados de saúde no Brasil.
Foram utilizados dados demográficos e de estabelecimentos com internação disponibilizados nos Tabnets gerenciados no âmbito do portal do Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH/Fiocruz). Na análise, foram apresentadas as variações absolutas e percentuais de leitos e leitos por usuários no período, segundo Unidades da Federação. A observação dos dados pela perspectiva dos estados brasileiros constitui opção deste observatório, considerando as questões relacionadas a desigualdades locais e o papel dos gestores nestes níveis.
É importante ressaltar que os parâmetros internacionais sobre oferta de leitos variam e sua análise depende de contextualização quanto às características dos estabelecimentos, seu financiamento e complexidade. Além disso, variações negativas não necessariamente indicam desassistência, mas podem apontar para mudanças na composição da população (e suas necessidades) bem como em mudanças de organização do sistema para ofertar o cuidado.
Resultados
Entre 2012 e 2022, houve uma diminuição geral no número total de leitos de internação SUS, caindo de 327.789 para 314.976, uma redução de 3,9%. Essa redução, no entanto, não se deu de modo uniforme em todo o país, observando-se variações marcantes entre as diferentes Unidades Federativas (UFs).
Cabe assinalar que a diminuição do número de estabelecimentos e leitos no país não é um fenômeno recente, observando-se tal tendência desde 1992, época em que o país contava com mais de 540.000 leitos (Chioro el als, 2021).
Em relação ao período sob análise, vale indicar que iniciativas como o fechamento de leitos de manicômios psiquiátricos e de outros leitos (crônicos) para tratamentos de longa permanência e o incremento de novas modalidades assistenciais - o atendimento domiciliar, as cirurgias ambulatoriais e o atendimento em regime de hospital-dia - em substituição à internação hospitalar, possivelmente concorreram para a redução do número de leitos.
Em contrapartida, ressalta-se o crescimento da oferta de leitos de terapia intensiva disponibilizada pelo SUS no período, quando os leitos de UTI passaram de 7,8% para 14,5% em relação aos leitos de internação.
O Estado do Rio de Janeiro se destacou por apresentar a maior redução percentual, passando de 29.538 leitos em 2012 para 21.506 em 2022, uma queda notável de 27,2% (60% dos leitos reduzidos correspondem a psiquiátricos e crônicos). Por outro lado, Roraima testemunhou um aumento significativo de 70,2% na oferta, com o número de leitos subindo de 785 para 1.336 durante o mesmo período.
A taxa de disponibilidade de leitos SUS a cada 1.000 habitantes usuários não cobertos por planos privados de saúde (subtraindo-se a população coberta por planos privados hospitalares) seguiu o mesmo padrão de redução, com variações entre as UFs, mas mantendo o sentido negativo em 18 delas. No Brasil, passou de 2,14 para 1,90 leitos/1.000hab (-11,1%), sendo a maior variação negativa no estado do Rio de Janeiro, que passou de 2,62 para 1,71 leitos/1.000hab (-34,7%) e a maior variação positiva em Roraima, que passou de 1,73 para 2,15 leitos/1.000hab (+24,1%) (Tabela 1).
Tabela 1. Leitos, população usuária não coberta por planos privados de saúde, e leitos SUS a cada 1.000 habitantes usuários não cobertos por planos privados de saúde – Brasil por UFs, 2012, 2022 e variação.
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/MS); População Estimada pelo Ministério da Saúde/SVS/DASNT/CGIAE para 2012 e Censo 2022; Sistema de Informações sobre Beneficiários (SIB/ANS).
Acesso via Tabnets OPGH/Fiocruz.
Observados os mapas do Brasil nos anos de 2012 e 2022, com cinco faixas de distribuição que indicam a posição de cada UF em torno da taxa média de leitos SUS por 1.000 habitantes não cobertos por planos privados, verifica-se manutenção de desigualdades no período, mantendo-se a maior parte dos estados da Região Norte na pior faixa, com menor oferta. Já no Nordeste, com exceção de Sergipe, os estados passaram a ocupar as faixas média ou superior à média em 2022, notadamente com importante avanço nos estados do Maranhão e Ceará. Todos os estados da Região Sul mantiveram-se ou passaram para faixas acima da média entre 2012 e 2022. Por outro lado, na Região Sudeste, o estado do Rio de Janeiro despencou da melhor faixa em 2012 para uma faixa abaixo da média do país em 2022. No Centro Oeste, Mato Groso do Sul e Mato Grosso avançaram positivamente em direção à média e acima dela, respectivamente (Figura 1).
Figura 1. Leitos SUS a cada 1.000 habitantes não beneficiários de planos privados de saúde, por UF – Brasil, 2012 e 2022
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/MS); População Estimada pelo Ministério da Saúde/SVS/DASNT/CGIAE para 2012 e Censo 2022; Sistema de Informações sobre Beneficiários (SIB/ANS).
Acesso via Tabnets OPGH/Fiocruz.
Com as variações ocorridas no período, observou-se a manutenção da desigualdade entre as UFs: em 2012, a distância entre Amapá e Rio de Janeiro era de 1,15 pontos percentuais (1,47 leitos SUS/1.000hab excl. SUS e 2,62 leitos/1.000hab excl. SUS respectivamente); já em 2022, entre Sergipe e Piauí havia uma diferença de 1,11 pontos percentuais (1,18 leitos SUS/1.000hab excl. SUS e 2,29 leitos/1.000hab excl. SUS respectivamente).
Analisando-se as taxas de leitos por pessoas em 2022, a disponibilidade de leitos SUS para a população usuária exclusiva do SUS foi inferior à disponibilidade de leitos não SUS para a população coberta por planos privados de saúde com cobertura hospitalar, em todos os estados do Brasil. A média do país apontou que a oferta para pessoas com planos era 54,3% superior em relação à oferta para pessoas sem planos. As maiores diferenças estavam nos estados do Tocantins (286,7%), Rondônia (198,7%) e Pará (195,6%), e as menores nos estados do Amazonas (9,7%), São Paulo (14,7%) e Paraná (24,6%) (Tabela 2).
Tabela 2. Taxa de disponibilidade de leitos de internação na população não coberta e na população coberta por planos privados de saúde hospitalar – Brasil por UFs, 2022.
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/MS); População Estimada pelo Ministério da Saúde/SVS/DASNT/CGIAE para 2012 e Censo 2022; Sistema de Informações sobre Beneficiários (SIB/ANS).
Acesso via Tabnets OPGH/Fiocruz.
Observando-se a diferença nas ofertas de leitos SUS e não SUS pelas populações específicas, não é possível identificar padrão de complementariedade ou proporcionalidade entre elas, parecendo não haver relação entre a oferta nos dois segmentos (não há maior oferta SUS onde a oferta não SUS é menor, ou vice-versa). Observa-se ainda uma distribuição mais equânime na oferta de leitos SUS, quando comparada à oferta de leitos não SUS (Gráfico 1).
Gráfico 1. Taxa de leitos SUS por 1.000 hab. população não coberta por planos privados de saúde com cobertura hospitalar e taxa de leitos não SUS por 1.000 hab. cobertos por planos privados hospitalares – Brasil por UFs, 2022.
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/MS); População Estimada pelo Ministério da Saúde/SVS/DASNT/CGIAE para 2012 e Censo 2022; Sistema de Informações sobre Beneficiários (SIB/ANS).
Acesso via Tabnets OPGH/Fiocruz.
Considerações Finais
A análise desses dados revela um cenário de mudanças, onde evidentemente fatores econômicos, demográficos e políticos vem desempenhando papéis significativos na configuração da oferta de serviços de saúde em todo o país, com a redução de leitos de internação em todos os estados e a elevação de desigualdade entre eles.
As mudanças no modelo assistencial precisam ser abordadas em novos estudos, de forma a se conhecer melhor a oferta de cuidados hospitalares no Brasil inseridos no contexto mais atual, auxiliando análises que busquem investigar quais são de fato as possíveis situações de desassistência.
A disponibilidade dos leitos SUS e não SUS pelas populações usuária do SUS e de beneficiários e planos indica distribuição mais equânime no sistema público em relação ao privado. Além disso, não parece haver complementariedade ou proporcionalidade entre estes segmentos (não há maior oferta não SUS onde a oferta SUS é menor, ou vice-versa). Possivelmente, os fatores relacionados à oferta de serviços privados não se baseiam particularmente em parâmetros demográficos e epidemiológicos, e estão sujeitos a interesses que não se relacionam à gestão do SUS. Nesse sentido, novas análises que considerem os tipos de leitos não SUS e o perfil de utilização de internações na população beneficiária de planos privados de saúde podem auxiliar no conhecimento acerca da situação da assistência hospitalar não financiada pelo SUS.
Por fim, importa destacar que os achados demonstram a persistência e o agravamento de disparidades regionais, com algumas áreas enfrentando desafios maiores do que outras em termos de acesso aos leitos de internação, independentemente das mudanças no modelo de atenção que podem afetar sua oferta. A variação entre estados indica que a expansão ou retração da rede não parece atrelada a políticas sistemáticas de caráter nacional, com espaço para o protagonismo de gestores estaduais e municipais, que podem trazer impactos sobre a igualdade de acesso.