04 de junho de 2019

Segundo Armando De Negri, naturalizar longas esperas é naturalizar uma violação massiva e sistemática do direito humano à saúde

O problema é velho conhecido da população que usa o SUS, está quase diariamente nos noticiários e ainda assim não tem merecido atenção suficiente quando se trata de planejamento e formulação de políticas públicas: a crise no acesso hospitalar é, segundo Armando de Negri, um tema central para ser discutido e solucionado se o Brasil pretende ter um sistema de saúde forte e resolutivo.

De Negri é médico e coordenador-geral da Rede Brasileira de Cooperação em Emergências. Nesta entrevista ao Observatório de Política e Gestão Hospitalar, ele lamenta que o assunto seja constantemente tratado como algo circunstancial e localizado, e não como o problema crônico e estrutural que de fato é. Ele ainda ilustra com números preocupantes a situação brasileira, conta que o único plano pensado para objetivamente mudar essa realidade foi feito há 80 anos – os resultados previstos jamais foram alcançados – e defende que a falta de acesso e a superlotação nas urgências sejam reconhecidos como violações aos direitos humanos.

Este é o ponto central de uma série de conferências livres que estão acontecendo em diversos estados e cujas discussões e propostas devem chegar à 16ª Conferência Nacional de Saúde. 

Confira a entrevista:
  
Quando se buscam notícias sobre hospitais no Brasil, é comum encontrar reportagens sobre longas filas, dificuldades para receber atendimento e usuários insatisfeitos. Nesse sentido, parece bastante oportuno posicionar a superlotação nos serviços de urgência e a dificuldade de acesso nos hospitais como uma violação dos direitos humanos.

Temos tratado deste assunto – um tema crônico – como algo circunstancial. Saem reportagens que denunciam o que ocorre em um hospital específico e em determinada circunstância, mas elas não discutem isso como um fenômeno nacional. Na Rede Brasileira de Cooperação em Emergências, mantivemos por quase quatro anos um  observatório diário do que saía na mídia, em todos os estados, sobre essa condição. E vimos que, nesse período, as situações se repetiam, sob variadas formas, quase sistematicamente em todos os estados. Era raro haver uma semana em que um estado não tivesse ao menos uma notícia nesse sentido. 

Isso mostra que há uma fragilidade na resposta à necessidade das pessoas que buscam as urgências, tanto considerando o número dos serviços como a sua capacidade de absorção em relação às necessidades. É praticamente inevitável que aconteçam situações de desassistência, ou de assistência prestada em um tempo insatisfatório, incapaz de evitar mortes e sequelas. A dificuldade parece ser retirar isso de uma dimensão circunstancial e entrar realmente no debate estrutural: enfrentar o fato de que se trata de uma “desassistência programada”, nos termos definidos pela Escola de Direito da Universidade de Roma. Ou seja, na medida em que há uma necessidade social que é conhecida e que se pode reconhecer como maior do que a oferta existente, quando se ignora isso e se proporciona uma oferta que não alcança os níveis necessários, as condições precárias vão se reproduzindo. Some-se a isso o problema de uma certa desprofissionalização de muitos serviços, com atendimento feito por trabalhadores com pouca experiência, contratados para cobrir lacunas e que não estão integrados em equipes organizadas para a atenção estruturada.

O que surpreende é que essa situação crítica não seja objeto de uma agenda política mais contundente: não se reconhece que há uma situação desastrosa. 

Temos dados que mostram pacientes aguardando muito tempo, inclusive vários acabam desistindo e vão embora. Isso é um indicador de fracasso no serviço de urgência, pois ninguém deve ir embora sem ser atendido. Isso também representa, tecnicamente falando, o critério de superlotação do serviço – nenhum paciente pode chegar a um serviço de urgência e ser examinado após mais de uma hora de espera, de acordo com o critério de segurança.

Naturalizar uma espera de muitas horas é naturalizar uma violação massiva e sistemática do direito humano à saúde, e é algo que precisa começar a ser encarado dessa maneira. Caso contrário, persistimos na naturalização de um tratamento desumano à população, especialmente à parcela mais pobre, que não tem recursos para buscar serviços mais ágeis. Além disso, mesmo na saúde suplementar também observamos que há uma saturação.

Essa condição de desassistência programada envolve dois tipos de demanda. Temos a demanda de cidadãos que podem ter alta após o atendimento no serviço de urgência, sem requerer hospitalização; e temos os que requerem hospitalização e precisam permanecer no pronto-socorro, ou mesmo na UPA, aguardando por uma vaga. Por terem sido objeto dessa decisão – a da necessidade de hospitalização – esse segundo grupo se encontra em uma situação delicada: esses pacientes precisam de estrutura hospitalar; porém, ao ficarem retidos nos serviços de urgência hospitalares ou em UPAs por muito tempo aguardando, são expostos a fatores que podem acarretar uma evolução negativa de seus quadros. Isso também gera, muitas vezes, um importante custo adicional. Afinal, estudos já comprovaram que, quando um paciente precisa aguardar muito tempo pela internação, ele depois tem mais chances de permanecer mais tempo hospitalizados. 

Essa percepção do tempo de permanência, principalmente dos pacientes que necessitam de internação, é um indicador fundamental que precisa ser transformado em uma espécie de bandeira de luta. 

Daí o mote das conferências livres…

Sim. Na primeira conferência, em Niterói [no dia 29/05] esse foi um dos temas centrais. Queremos trazer para o debate no país a necessidade de que os pacientes sejam atendidos e tenham alta do serviço de urgência em um período entre 4 e 8 horas, dependendo da gravidade do seu problema. Nesse período devem, portanto, ou ter alta ou ter o encaminhamento adequado. Essa é uma discussão nova no país. O próprio Ministério da Saúde admite, hoje, que os pacientes de urgência aguardem por até 24 horas. Só que, comprovadamente, após 12 horas de permanência em serviços de urgência a mortalidade evitável aumenta até 40%.

A condição em que isso ocorre é a de superlotação dos serviços. Os pacientes ficam retidos porque a demanda é muito superior à oferta, seja em relação ao número de profissionais disponíveis, seja em relação à realização de exames e procedimentos, ou seja em relação ao número de leitos disponíveis para a hospitalização, o que é o mais comum. 

Além da conferência no estado do Rio, haverá outras seis. Estamos colocando em debate a necessidade de definir o limite de permanência. Sabemos que isso vai gerar polêmica. O argumento contrário imediato é o de que não temos leitos suficientes e, com isso, há uma tendência à naturalização da espera. Não podemos permitir que isso aconteça. Ao trazer essa discussão, trazemos a experiência internacional nesse tema. Um limite já foi adotado em outros países. Na Inglaterra, por exemplo, é de quatro horas, assim como na Austrália. Na Nova Zelândia são seis horas e, no Canadá, ele é de quatro a oito horas, segundo a classificação inicial da gravidade. 

Essa referência internacional tem um peso significativo para revisar criticamente tudo o que cerca essa permanência exagerada. Isso tem a ver com infraestrutura, com a dimensão dos serviços, com a lotação adequada de pessoal, com a capacidade de avaliar os resultados – por exemplo, todo serviço de urgência deveria ter um comitê de mortalidade e intercorrência para analisar os resultados finais, e não temos. Isso torna os serviços pouco transparentes para os pacientes. 

O critério de 24 horas, adotado hoje pelo Ministério, tem respaldo em algum estudo?

Não, é um critério estritamente administrativo. Tem a ver com o fato de que, até 24 horas, a pessoa pode permanecer no serviço de urgência sem que seja emitido uma autorização de internação hospitalar. Se ultrapassar esse período, o paciente teoricamente está internado, é preciso emitir essa autorização e remunerar a permanência como internação. Só que ele não está em uma unidade de internação, está em um pronto-socorro. 

Em muitos locais, isso está levando a outra perversão, que é a de organizar unidades de internação nos prontos-socorros – como não há o serviço adequado, criam-se soluções improvisadas. Isso teve inclusive apoio do Ministério da Saúde, que começou a reconhecer as salas de internação dentro das urgências. Mas sejamos claros: se temos pacientes que estão em aparelhos de suporte respiratório no pronto-socorro, mas esses espaços não são UTIs, então não vai haver ali o corpo de enfermagem nem os profissionais de terapia intensiva que seriam necessários para garantir a atenção adequada. Estamos fazendo uma espécie de “puxadinho” para acomodar os pacientes que cronicamente não conseguem leitos adequados. 

Há quanto tempo isso acontece?

Isso é algo que, de uma forma ou de outra, já está em pauta há cerca de 20 anos. Mas foi ganhando certa “oficialização” em um período mais recente, nos últimos oito ou nove anos. Foram criadas as salas amarelas, laranjas e vermelhas – e a sala vermelha já é a de reanimação, já possui pacientes internados. É uma distorção completa. O pronto-socorro deve ser um lugar de passagem onde os usuários vão para receber um diagnóstico ou uma hipótese diagnóstica que exige uma sequência. Mas, ao fazer esse diagnóstico inicial, o que interessa nos serviços de urgência é saber se o paciente apresenta um quadro que ameace a sua vida. A partir desse diagnóstico, podem ser tomadas as medidas que permitam iniciar o atendimento adequado o mais precocemente possível.

A ideia de criar formas de hospitalizações nas urgências surgiu sob o argumento de que era preciso atender melhor. No entanto, as estruturas se saturaram rapidamente, e ainda bloqueiam o fluxo de novos pacientes que precisam ser atendidos nas urgência em um tempo adequado. Em lugar de questionar a ausência de leitos suficientes e pensar na restruturação do próprio conjunto de leitos hospitalares, foi-se criando esse "puxado" no pronto-socorro. Uma consequência disso é que, como estão saturados, prontos-socorros querem fechar suas portas à demanda espontânea, e receber apenas o conjunto dos pacientes referenciados. Isso diminui os pontos de acesso, de modo que hoje há pacientes retidos nas próprias UPAs. É um efeito-cascata.

Onde entram as UPAs nessa discussão? Porque de fato tem sido muito comum vermos pessoas que passam dias na UPA aguardando vaga para internação. 

As UPAs não foram concebidas para isso, embora tenham sido “vendidas” de forma inadequada como uma solução para a superlotação hospitalar. A portaria que as criou dizia que deveriam ser unidades pertencentes ao complexo da atenção básica. A ideia é proteger a população nos períodos em que a atenção básica não funciona, como à noite, nos feriados e nos fins de semana. Seus trabalhadores deveriam ser profissionais da atenção básica, e o atendimento seria feito nos territórios, preservando o vínculo da atenção básica e com critérios para remeter pacientes para a atenção hospitalar. Quando se vende a UPA como uma resposta milagrosa contra a sobrecarga hospitalar, isso nos autoriza a pensar que as UPAs prestam atendimento como se fossem prontos-socorros. Isso acabou naturalizando a permanência nessas unidades.

Isso leva à diminuição da pressão sobre os prontos-socorros, mas não resolve o problema dos pacientes, que estão esperando da mesma forma. Tivemos essa discussão recentemente em um hospital de urgência no Piauí, pois eles fecharam as portas e passaram a receber exclusivamente pacientes referenciados. Porém, os pacientes que estão aguardando nas UPAs e nos hospitais de baixa capacidade são, na realidade, de responsabilidade desse hospital de referência.

E qual o cenário do número de leitos hospitalares no Brasil hoje?

Há uma referência histórica interessante. A única vez em que houve um debate e um projeto nacional de oferta suficiente de leitos no Brasil foi no governo Vargas, em 1943. Naquele ano, foi lançado um programa nacional de construção, equipamento e qualificação da atenção hospitalar no país. Havia sido realizado um censo hospitalar que mostrou a existência de 1,6 leitos para cada mil habitantes. Na mesma época, os Estados Unidos tinham o objetivo de chegar a 5 leitos para cada mil pessoas, e essa mesma referência foi adotada aqui – um número que deveria ser atingido em todos os estados. Para isso, Vargas criou um fundo de investimento e um plano com 20 anos de duração.  

Desde 1992, já após a criação do SUS, o número geral de leitos no país – considerando o somatório dos leitos SUS e não-SUS – tem diminuído de forma constante, e de modo muito significativo nos leitos SUS. Tem havido uma redução de leitos, ao mesmo tempo em que a população cresce e envelhece. Portanto, estamos cada vez mais chegando a uma situação caótica, com a superlotação nos serviços de urgência se torna mais e mais relevante. 

Em outros países que têm sistemas universais de saúde com a atenção primária forte e resolutiva, e com uma forte ambulatorização dos cuidados (ou seja, muitos procedimentos que eram feitos via internação sendo realizados em ambulatórios), o número de leitos para pacientes que vêm da urgência ou dos ambulatórios continua sendo de cerca de 3,5 a 3,7 a cada mil habitantes. No Brasil, hoje, temos no SUS uma taxa de 1,4 e, considerando leitos públicos e privados, ela chega a 2,1. 

Então ainda estamos próximos da Era Vargas.

E o interessante é que, quando olhamos o número de vagas por estado, a desigualdade entre estados segue praticamente a mesma. Ou seja, no Norte e no Nordeste, a oferta é menor.

O plano dos anos 1940 chegou a algum resultado?

O objetivo nunca foi alcançado. Houve muitos problemas, o fundo criado inicialmente nunca foi suficiente. Porém, o fato de haver um projeto em curso fez com que se mobilizassem recursos e houve avanços que são percebidos ainda hoje. Há, nos estados, muitos hospitais construídos desde os anos 1940 até o início dos anos 1960, e, não por acaso, vários se chamam Getúlio Vargas. Essa política foi importante até 1965, quando foi revogada pela ditadura militar. 

hospital Getúlio Vargas

Em relação à redução do número de leitos, ela nem sempre é tida como algo ruim. Em alguns momentos o fechamento de leitos específicos é comemorado, como é o caso dos leitos psiquiátricos, no contexto da Reforma Psiquiátrica…

Nos últimos 10 anos, tivemos 51 mil leitos fechados pelo SUS. Destes, 16 mil correspondem a hospitais de perfil manicomial, os grandes hospitais psiquiátricos, privados ou filantrópicos, que foram fechados. É preciso entender que em todos os sistemas universais de saúde há em torno de 10% a 20% de leitos ligados à longa permanência, e a saúde mental é importante nessa conta. Porque em geral os pacientes de saúde mental permanecem um tempo maior internados do que os da clínica ou da cirurgia, mesmo que não se trate de uma internação manicomial. 

No Brasil, fechamos as estruturas manicomiais, mas ainda não criamos os leitos de saúde mental em hospitais gerais, embora a Reforma indicasse essa necessidade. Assim, não há muito o que se comemorar nessa redução. É preciso comemorar o fechamento de manicômios, mas saber que deixamos essa população sem cobertura. Isso está gerando na sociedade um rechaço e até mesmo a reivindicação da volta das estruturas de internação psiquiátrica exclusiva, o que é um grande problema. No SUS, os leitos de longa permanência são apenas 2% dos 307 mil leitos disponíveis hoje. 

Então, tivemos mais de 50 mil leitos fechados, e outros leitos que migraram para a saúde suplementar. O número de pessoas com seguros de saúde cresceu de 23 milhões no início dos anos 2000 para 52 milhões em 2014, e os prestadores que vendem seus serviços a seguros privados enxugaram o número de leitos voltados ao SUS. Também nos últimos 10 anos, só foram criados 13 mil leitos novos nas estruturas do Estado, e esse balanço entre o número anual de leitos fechados e criados tem sido negativo desde 2002. 

Há uma notícia ainda pior. Estivemos analisando como esses leitos do SUS são usados. E descobrimos que metade não são utilizados, pois estão em hospitais muito pequenos, que não conseguem ter profissionais especializados estáveis, não conseguem ter plataforma tecnológica. Ou seja, não há justificativa para internar pacientes em hospitais de tão baixa densidade profissional e tecnológica. 

Desse modo, temos hospitais de referência sobrecarregados e, ao mesmo tempo, hospitais vazios. Alguns críticos à ideia de que é preciso aumentar o número de leitos olham justamente para esses hospitais vazios para dizer que há leitos sobrando. Sim, há leitos desocupados, mas de que leitos estamos falando? Eles não conseguem resolver as necessidades da população. Infelizmente, só metade dos leitos disponíveis têm essa capacidade.

Isso deixa o Brasil numa posição próxima à da Índia ou à de países da África subsaariana, onde há sabidamente uma crise monumental de acesso. Há uma crise de acesso no Brasil e não discutimos isso. Hoje, há um déficit de quase 500 mil leitos hospitalares no Brasil. E eles precisam ser criados em hospitais de porte razoável, que concentrem profissionais e tecnologias necessários e estejam em redes de base territorializada. Porque, se é verdade que a saúde não sobrevive sem uma atenção básica qualificada, a atenção básica também não sobrevive sem hospitais qualificados conectados a ela. 

E nisso está o dilema de como nós podemos levar esse debate para a uma agenda de alta política, pois é algo que depende de uma grande responsabilidade da União. Hospitais deveriam ser da esfera estadual, mas os estados não têm recursos suficientes para custeá-los. Essa expansão precisa acontecer pari passu com a expansão da atenção básica, onde ainda há cobertura e efetividade insuficientes. É preciso pensar as redes hospitalares integradas às redes de atenção básica, compondo redes de atenção à saúde regionais. E, se é verdade que os estados precisam participar fortemente dessa reivindicação, constituindo capacidade de gestão integrada, também é fato que o financiamento precisa vir fortemente de recursos nacionais. 

O que nos leva a destacar que, sem dúvidas, precisamos de um volume de recursos muito maior do que o que temos. Aumentar 500 mil leitos significa aumentar significativamente o volume de profissionais – para cada 100 leitos, são necessários 70 médicos, de modo que essa expansão demanda 350 mil novos médicos. Não é, portanto, algo que se possa enfrentar pouco a pouco, em pequena escala, como temos feito, com a criação de novas alternativas hospitalares. Quando isso é feito dessa forma, o que ocorre é que a velocidade da resposta não é suficiente, e só aumenta a oferta privada, em ambientes onde quem pode pagar entra, e quem não pode fica de fora, e se desgasta cada vez mais a tese generosa e universal do sistema único – que falha nessa área, justamente uma área de grande interesse do grande capital. 

Existe uma discussão sobre os hospitais de pequeno porte que também precisa ser feita...

Sim, é preciso haver planejamento, os novos hospitais devem estar em um plano construído racionalmente. Não podem ser aleatórios. Há hospitais que só geram dois momentos de alegria: quando são inaugurados e quando são fechados. Porque um hospital, quando feito sem planejamento, se torna rapidamente um sangradouro de finanças, e é difícil fechá-lo porque nenhum prefeito quer ser o responsável por encerrar as atividades de uma instalação sanitária. 

Isso não significa que não há necessidade de hospitais menores. Eles têm, sim, uma função. No interior do Amazonas, muitos municípios têm hospitais dos governos estaduais. São pequenos, mas fundamentais em um estado onde muitas vezes o hospital é a única estrutura de saúde em dias de deslocamento da população. Nesses casos, a estrutura pode ser pequena e certamente será deficitária, mas é preciso mantê-las, é preciso ter essa presença sistemática e há uma função ali. Não é assim que ocorre em outras regiões, onde há hospitais próximos a outros e seria mais interessante ter um hospital regional. Há um certo desenho da rede hospitalar que só pode emergir de uma discussão localizada nos territórios e em regiões assistenciais.

E ainda é preciso preservar a ideia de que a oferta hospitalar, tanto na urgência como na internação, precisa ter organicidade em relação à atenção básica. O planejamento deve ser ascendente, e encontrar formas coerentes na sua arquitetura geral. 

Por que esse problema de acesso não tem sido uma prioridade?

Você mencionou algo que na realidade me perturba como alguém da Saúde Coletiva – tenho formação na epidemiologia, na área de ciências sociais, comecei minha trajetória na atenção básica, depois me interessei pelos processos de organização das urgências e, nos últimos 10 anos, tenho analisado a situação dos hospitais. Nessa trajetória, fui percebendo que temos no campo da Saúde Coletiva uma espécie de preconceito sobre o debate hospitalar, como se, ao falar em hospitais estivéssemos advogando por um sistema centrado na doença, hospitalocêntrico. Há um certo exagero nisso: é muito difícil conceber um sistema de saúde sem hospitais. Isso não existe em lugar algum do mundo.

Se olharmos para o exemplo de Cuba, vemos que esse é o único país da América Latina que tem um número de leitos hospitalares próximo ao de países mais desenvolvidos economicamente e que têm sistemas universais de saúde, com 3,5 para cada mil habitantes. E por que é assim, se eles têm uma atenção básica tão capilarizada e resolutiva? Porque há um conjunto de necessidades humanas e sociais no campo da saúde que se expressa em torno da necessidade de internação. Se eu tiver um infarto, vou precisar de uma unidade de urgência hospitalar adequada, de uma unidade coronariana, de uma UTI, de recursos que só são possíveis de disponibilizar de forma concentrada, em uma rede estruturada. Não é possível ter unidades coronarianas em unidades de Saúde da Família. Mas a Saúde da Família vai ser a antena para perceber o infarto, vai vincular ao sistema hospitalar, dar aspirinas, oxigênio, vai oferecer os primeiros gestos de suporte para que eu tenha condições de chegar de forma protegida até o local do atendimento adequado. Acredito que nós da Saúde Coletiva deveríamos valorizar mais a atenção hospitalar, pois isso não é divergente de ter a atenção básica como espírito estruturante do sistema.

E, olhando para ‘fora’, temos que ao capital não interessa tanto disputar a atenção básica, mas interessa muito disputar a atenção especializada e hospitalar. Quanto mais fragilizada elas estiverem no SUS, mais cresce a pressão da oferta no setor privado, tanto para ser prestador do sistema público como para ser prestador na saúde suplementar, como alternativa para quem pode pagar.

Que proposta as conferências estão trazendo em termos de ampliação do acesso?

Estamos trabalhando com a referência de alcançar 4 leitos para cada mil habitantes. Destes, 2,5 seriam leitos para pacientes agudos, advindos das urgências; um seria para os ambulatoriais, onde se encaixam os procedimentos eletivos e os ingressos programados, e 0,5 de longa permanência, que não precisam ser necessariamente hospitalares. Isso pode ser pouco ou muito dependendo de cada região ou estado, por isso  o planejamento deve ser de acordo com as necessidades locais e as prospectivas futuras dentro da realidade de cada território.

O que vocês esperam conseguir com a realização das conferências livres?

Esperamos que, com as conferências livres, encontremos mais espaço institucional e estrutural para fazer esse debate. Essas conferências foram oportunidades que encontramos para pautar o tema na 16ª Conferência Nacional de Saúde e em seguida promover um debate no Conselho Nacional de Saúde.

Antes da 16a CNS, é permitido realizar essas chamadas conferências livres e, quando houver 51 participantes ou mais, é possível eleger um ‘participante livre’ para ir à CNS. Essas pessoas poderão participar na etapa nacional com direito a voz, mas não a voto. Já os relatórios entrarão nos anexos da CNS; deles, serão retirados elementos considerados importantes pela comissão de relatoria e estes serão documentados como contribuições das conferências livres. Temos, portanto, uma oportunidade para ampliar os espaços de conhecimento e discussão. Teremos seis conferências livres com essa temática até esse prazo estabelecido. E, mesmo depois, continuaremos promovendo esses encontros até o dia 30 – nesse caso, não poderemos mais enviar participantes livres. 
 


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