Na última entrevista para nosso Debate sobre Contratualização conversamos com a Dra Sheyla Lemos, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Sheyla é doutora em Saúde Pública e em 2009 defendeu a sua tese sobre Possibilidades e Limites dos Contratos de Gestão na Conformação de Sistemas de Direção para Hospitais e desde então vem se dedicando ao tema.

Falamos com ela sobre a contratualização como instrumento de gestão, suas dificuldades e vantagens e também sobre o contrato entre os hospitais federais do Rio de Janeiro e a Prefeitura da cidade.

A contratualização de serviços tem se tornado uma prática cada vez comum no âmbito do SUS. A PNHOSP adota este novo modelo de relação entre as instâncias gestoras e os prestadores hospitalares, estabelecendo as diretrizes para a sua efetivação. A partir de então, os gestores devem formalizar compromissos com as unidades hospitalares que estejam sob a sua gestão, sejam eles públicos ou privados. Como explicar tamanha difusão desse instrumento de gestão em nosso contexto? Isso representa uma tendência internacional?

Sheyla Lemos - A difusão do instrumento não é somente em nosso contexto. Mais ou menos a partir da década de 80 tem início um movimento praticamente universal, que começa nos governos Reagan e Thatcher, de reduzir o Estado e melhorar o desempenho da administração pública,  movimento usualmente  denominado de managerialism ou gerencialismo ou nova gestão pública (new public management). Em síntese, esse movimento preconizava uma reforma do Estado e da administração pública tendo em vista a orientação para os resultados,  o  incremento da prestação de contas e a separação entre as funções de financiamento, compra e regulação da função de prestação de serviços.

Apesar do registro de uso de arranjos contratuais na França no final de década de 60, com empresas estatais e de economia mista, é na decada de 80 que há uma rápida e universal  difusão das proposições do movimento da Nova Gestão Pública e do uso dos arranjos contratuais

Este movimento mais geral tem rebatimento para o setor saúde, mais ou menos, na década de 90. As críticas eram semelhantes e as soluções também. Os arrranjos contratuais neste contexto passam a ser utilizados porque em tese induziriam o foco nos resultados e na prestação de contas, se constituindo ainda no principal mecanismo de coordenação e vinculação entre o Estado e o prestador de serviços (que não mais estaria no interior da administração pública).

Desde então, no setor saúde, os arranjos contratuais têm sido cada vez mais utilizados, em vários países, entre autoridades governamentais de saúde e prestadores, sendo privados ou estatais (ou seja, são utilizados com ou sem separação das funções de prestar serviços e financiar), de atenção básica e hospitalar, com o intuito de melhorar o desempenho dos prestadores e incrementar a prestação de contas de resultados para usuários, financiadores e governos. A suposição subjacente é que os resultados insatisfatórios, considerados quase um consenso, em parte, são determinados pela insuficiente prestação de contas e pelo repasse de recursos financeiros não condicionado ao desempenho.

No Brasil, no Sistema Único de Saúde, os arranjos contratuais estão sendo utilizados como instrumentos de coordenação e ligação do núcleo central da administração pública estadual e ou municipal, com seus próprios entes internos já existentes e/ou com novas modalidades jurídico-administrativas, público ou privadas, prestadores de serviços de saúde. Em quaisquer alternativas – fundações, organizações sociais, ou a própria administração direta -, os arranjos contratuais são os instrumentos que vinculam a  ente financiador (administração direta) ao ente prestador (administração direta e entes privados tais como as OS).

O que a contratualização traz de novo?

Sheyla Lemos - Há um tripé de sustentação dos arranjos contratuais -  (1) um plano de atividades com estimativa de recursos para sua execução e definição de metas e indicadores que possibilitem o acompanhamento do plano, (2) um sistema de monitoramento e  avaliação do plano e (3) um sistema de incentivos, que condicione o repasse de recursos ao alcance de resultados pré-definidos e acordados (as metas e indicadores) contidos no plano e integrantes do sistema de monitoramento e avaliação. O arranjo contratual é uma relação que se estabelece entre partes – o contratante e o contratado – então o referido tripé se constitui em uma construção que deve ser pactuada entre as partes envolvidas. Essa articulação entre – planejamento, avaliação e repasse de recursos com base no desempenho em um ambiente de pactuação – seria talvez a novidade.  

Tripe

 

Em tese, quais são os ganhos advindos da contratualização de serviços?

Sheyla Lemos - Seriam ganhos esperados: melhor alocação de recursos pela sua  vinculação ao planejamento das ações de saúde e condicionamento ao desempenho; maior prestação de contas dos prestadores e dos compradores em relação ao uso de recursos públicos – maior transparência; foco na quantidade, qualidade e custos dos serviços; compartilhamento de responsabilidades, desenvolvimento de uma cultura de negociação e incentivo ao desenvolvimento da capacidade tecnico-gerencial assistencial e administrativa do contratante e do contratado.

Lembrando, como já dito, que sua finalidade maior seria melhorar o desempenho dos prestadores e incrementar a prestação de contas de resultados para usuários, financiadores e governos

De outra parte, quais desafios e exigências que a contratualização impõe sobre as esferas gestoras (contratante) e os prestadores hospitalares (contratado)?

Sheyla Lemos - Primeiramente poderíamos identificar exigências/recomendações mais gerais:

. Formulação de uma política de contratualização, como uma política de Estado e não de governo,  atrelada à política de saúde, para diminuir as incertezas ambientais advindas das mudanças de governo;

. Articulação entre planejamento de saúde e arranjos contratuais de forma a assegurar a  integração entre as unidades componentes da rede de serviços de saúde. Caso não haja, pode estimular a fragmentação. Exige portanto uma perspectiva sistêmica por parte do contratante e contratado;

. Implantação de sistema de informações sobre prestadores e população a ser atendida;

. Adequadas estimativas de recursos para implantação e manutenção da lógica contratual;

. Uso de sistema de incentivos para os prestadores de serviços e suas equipes;

.  Ênfase na negociação, cooperação e comunicação entre as partes contratantes;

. Desenvolvimento da capacidade de regulação e gestão do contratante e da capacidade de gestão do contratado.

Vale destacar que o contratante se constitui em parte central pois cabe a ele a condução do processo:  precisa regular (induzir e monitorar), planejar - a partir das necessidades da população e oferta da rede - para definir o que cada contratado precisa e pode fazer, conduzir a negociação, desenhar o contrato e incentivos, monitorar o contrato, implementar penalidades ao não desempenho e vice –versa, estimar adequadamente os recursos para implementação - quanto menor capacidade tecnico-gerencial e piores condições fisico-estruturais da rede, maior gasto inicial.  Por sua vez, o contratado também precisa monitorar o contrato, os recursos utilizados, as metas e indicadores e conduzir a negociação internamente com as equipes.

Como têm se passado as experiências de contratualização no âmbito do SUS? Quais são os principais resultados observados?

Sheyla Lemos - No Brasil a contratualização é o termo mais utilizado para os arranjos contratuais, porém outros termos podem ser encontrados.  Observa-se o uso de arranjos contratuais no SUS na área hospitalar, na atenção básica e ambulatorial, no interior da administração pública direta, como é o caso da SMS de Curitiba na atenção básica, entre a administração pública direta e organizações sociais, como a SES de SP e OS que operacionalizam vários equipamentos da rede de serviços ou ainda, a SMS do RJ e  OS na atenção básica. Pode ainda envolver entes da administração pública de diferentes esferas de governo como aquelas que envolvem as secretarias de saúde e hospitais federais sendo de ensino ou não, como o caso da atual portaria. 

Talvez a experiência mais antiga seja a da SES de SP. Iniciada em 1998/9, em que as OS eram responsáveis por colocar em operação cerca de 20 novos hospitais. Houve importante expansão da atuação das OS no caso de SP, as quais hoje são também responsáveis pela gestão de ambulatórios de especialidades, centros de reabilitação e de idosos, laboratórios de imagem e analises clinicas, distribuição de insumos, central de regulação.

Na SMS de Curitiba, desde de 2003, são estabelecidos Termos de Compromisso (TERCOM) entre o núcleo central da SMS e equipes de saúde da Atenção Básica. É, portanto, uma contratualização no interior da administração pública direta municipal. Em estudo recente de 2017, identificou-se que há uma pactuação frágil das metas e definição de indicadores com baixa participação das equipes e uma priorização de metas quantitativas. Além disso, identifica-se que o incentivo apesar de ter um efeito descontinuo na motivação, funciona como incentivo à atuação conjunta, à corresponsabilidade e ao trabalho em equipe

Nestas experiências o tripé dos arranjos contratuais mencionados está presente, há um plano de atividades, um sistema de monitoramento e avaliação e o repasse de recursos condicionado à avaliação de desempenho. Quanto ao ambiente de pactuação entre contratantes e contratados, em algumas experiências está mais consolidado e em outras menos, como é o caso das OS na AB da SMS RJ (neste caso as OS não participam da comissão de avaliação).

De toda forma, o balanço das publicações sobre o tema não apresenta um resultado conclusivo com opiniões favoráveis e desfavoráveis considerando ainda diferentes aspectos, o que dificulta a comparação. Igualmente, a controvérsia também existe em relação aos estudos sobre as experiências internacionais. Os estudos ainda não dão conta de responder se de fato os arranjos contratuais melhoram o desempenho dos serviços de saúde nas diferentes dimensões que se possa considerar, tanto nos aspectos assistenciais quanto administrativos, mas, em especial, se este desempenho está ajustado às necessidades de saúde da população.

No caso da contratualização dos Hospitais de Ensino, como se avalia esta experiência?

Sheyla Lemos - Tive a oportunidade de participar de uma avaliação da contratualização dos hospitais de ensino realizada em 2009. A contratualização dos HE se deu a partir do 2º  semestre de 2004, dentro do Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino que tinha como principais objetivos a redefinição do perfil assistencial, incrementando sua integração do SUS, em especial, na média e alta complexidade, a redefinição de sua atuação na educação permanente e formação profissional e na pesquisa e avaliação tecnológica  no SUS, além da qualificação gerencial e assistencial

A pesquisa objetivou identificar alterações na produção e indicadores, além de aspectos positivos e negativos identificados pelos gestores e diretores relacionados à contratualização. Comparou-se dados dos sistemas oficiais de informação do MS em dois períodos, 2004 e 2009.  Quanto ao ajuste assistencial, observou-se que houve um pequeno incremento da alta e média complexidade hospitalar e um incremento bastante significativo na alta complexidade ambulatorial. Quanto aos indicadores hospitalares, tempo médio de internação, taxa de ocupação e taxa de mortalidade, não houve variação significativa de valores.

Além disso, nas entrevistas com gestores de secretarias e hospitais, foram identificados problemas e benefícios com o uso da contratualização. Dentre os problemas destacam-se a subestimação dos recursos financeiros no contrato, a insuficiência de informação sobre as necessidades de saúde da população e capacidade de oferta da rede, a ausência de incentivos financeiros para as equipes e a baixa motivação das equipes dos hospitais para o alcance de metas (o incentivo era destinado apenas ao hospital). Como principais benefícios, a maior integração do hospital à rede, a melhoria da capacidade de gestão, o maior conhecimento da rede, o incremento da produção de média e alta complexidade e a melhoria do registro das informações.

E quais têm sido as maiores dificuldades encontradas na implementação desse processo?

Sheyla Lemos - Ressaltando alguns aspectos já levantados. A construção do sistema de monitoramento e avaliação é complexo – que indicadores usar que mensurem a qualidade, inclusive do ponto de vista da satisfação do usuário, além da produtividade? Como avaliar diferentes dimensões – assistenciais, gerenciais, ensino e pesquisa? Considerando ainda a viabilidade de coleta de informação? Como usar incentivos que não somente financeiros, que  incentivem a colaboração e não apenas a competição? Como assegurar a efetiva participação dos entes envolvidos em todo o processo? Como desenvolver a capacitação técnica necessária para implementação do arranjo contratual? E aqui a capacidade técnica do contratante é central.  Como diria Carlos Matus, no seu triângulo de governo, a capacidade técnica de governo é central para melhorar o projeto e a governabilidade       

Este modelo de relacionamento, em regra, pressupõe a existência de incentivos e de sanções ao contratado, de acordo com o grau de cumprimento das metas estabelecidas. Os termos de compromissos firmados no âmbito do SUS têm contemplado estes elementos de forma satisfatória?

Sheyla Lemos - De maneira geral, o sistema de incentivos (premiação e punição) está contemplado nos dispositivos que formalizam os arranjos contratuais. A sua aplicação, na prática, nem sempre ocorre. Por exemplo, no estudo sobre os HE mencionado acima, o recurso financeiro cujo repasse era condicionado ao alcance de metas, era, segundo os próprios dirigentes, repassado mesmo quando as metas não eram alcançadas. Embora eu considere importante haver o condicionamento de repasse de recursos ao desempenho alcançado,  vale ressaltar que mais importante que o sistema de incentivos é o sistema de avaliação de desempenho; talvez seja a estratégia central, sem isso a lógica contratual perde a razão de ser e o contrato se torna mais um papel preenchido ou mais uma formalidade. O intuito é menos de fiscalização do alcance absoluto e total das metas e indicadores e mais de seu aprimoramento e aprendizado contínuos  das razões que explicam seu maior ou menor alcance .

Dentre as diretrizes da PNHOSP, consta a constituição de uma Comissão de Acompanhamento da Contratualização. Existe algum estudo a respeito de como estas Comissões têm funcionado?

Sheyla Lemos - Não que eu conheça.  A constituição dessas Comissões é necessária e sempre está presente nas normativas. A definição de sua composição costuma ser responsabilidade do gestor estadual ou municipal; em geral é ele que a designa.   Por exemplo, nos primórdios da contratualização entre SES SP e OS participavam da Comissão representantes da Assembleia Legislativa e do Conselho Estadual de Saúde, dentre outros membros. Nas Comissões da SMS Curitiba, participavam o nível central, as unidades e representantes de usuários. Embora não houvesse representação de Assembleia e Conselho de Saúde, como em SP, havia uma prestação de contas regular a essas instâncias sobre a contratualização. Nas Comissões da SMS RJ e OS da AB, apenas os representantes internos do nível central e coordenador da área programática também da secretaria, participam da Comissão. Na verdade, são várias Comissões, uma para cada área programática. Não há uma receita de bolo. O importante é assegurar o envolvimento das diferentes partes interessadas na contratualização e a regularidade do monitoramento e avaliação. Além destas reuniões das Comissões, outras estratégias podem ser consideradas como visitas, auditorias, devolutivas de resultados nas unidades contratadas, pesquisas eventuais, etc.  As Comissões têm que ser vistas como um mecanismo de pactuação, de monitoramento e avaliação e de prestação de contas que deve estar articulado a outros mecanismos de controle interno e externo

As seis unidades hospitalares do MS no Rio de Janeiro formalizaram recentemente compromissos com a SMS-RJ (Portaria GM n.1175 de 26 de abril de 2018). A seu ver, qual pode ser a importância deste ato para a atenção hospitalar na cidade? Em que medida tal iniciativa pode favorecer o funcionamento mais integrado da rede hospitalar do SUS?

Sheyla Lemos - Se as condições acima comentadas não estiverem sendo consideradas, dentre elas um planejamento das ações da rede de serviços em que se inserem estes hospitais, uma estimativa adequada de recursos para a operacionalização das metas contratadas, a definição de metas que contemplem ações de integração do hospital na rede, um adequado sistema de monitoramento e avaliação e de incentivos, e uma adequada pactuação interna com as equipes acerca das metas contratadas, poderá se constituir em mais um formalismo. Em tese, pode ajudar a integração, mas dependerá das condições de operacionalização. Se as Coordenações de área programática da SMS que são as gestoras das redes, estiverem à frente desse processo pode ser um fator facilitador. Ocorre que os hospitais federais sempre estiveram, na prática, à parte do gestor da rede.       

Os termos fixados na Portaria GM n.1175 guardam algumas singularidades. Possivelmente, a mais importante delas consiste em que o termo de compromisso assinado não envolverá repasse de recursos financeiros, uma vez que os hospitais federais são unidades orçamentárias. Como você interpreta isso? Tal condição não tende a limitar o poder de indução desses contratos? Você sugere alguma medida que possa compensar esta situação?

Sheyla Lemos - Esse é um limitante. Há uma subtração de um dos tripés de sustentação dos arranjos contratuais que é o repasse de recursos mediante o desempenho. Sem dúvida limita o poder de indução.    

A contratualização dos hospitais federais compreende seis contratos – um para cada unidade. Para você, qual seria o melhor modelo de monitoramento e avaliação desses contratos? A proposta adotada envolve uma única Comissão de Acompanhamento, sob a coordenação do DGH. Ela será composta por um membro do DGH, um de cada Unidade hospitalar e representantes da SMS-RJ e da SES-RJ. Como você avalia este modelo?

Sheyla Lemos - Como já disse não há um modelo a ser seguido; o importante é assegurar a participação dos diferentes entes envolvidos que têm interesses específicos a serem negociados e compromissos a serem pactuados. A presença das Coordenações de área programática que são, na prática, gestoras de rede de serviços de saúde da área precisaria ser considerada. Ela, em tese, é quem melhor sabe que tipo de serviço existe em sua área e que tipo de serviço a população moradora de sua área demanda. A presença de todos os hospitais pode ser interessante na medida em que cada um por ter um perfil assistencial especifico, ter um papel na rede de serviços das diferentes áreas programáticas.

De toda forma a comissão deveria ser um dos componentes do sistema de monitoramento, outras estratégias também já citadas podem ser consideradas.   

Finalmente, quais sugestões e advertências você faria para os gestores e dirigentes hospitalares implicados neste processo de contratualização?

Sheyla Lemos - Acho que já falei no decorrer da entrevistas, mas vou deixar alguns alertas:

Calibragem gradual tendo em vista os diferentes estágios de desenvolvimento organizacional dos hospitais e das secretarias   – progressividade nas exigências;

Utilizar a experiência acumulada e existente nas secretarias de saúde acerca da contratualização;

Abordagem Sistêmica, os hospitais devem estar inseridos na rede e atenderem, assim, as demandas de outros pontos de atenção;

Construir credibilidade (gradual e continua) – fazer diferença entre alcançar ou não resultados pré acordados.

É um processo contínuo que pode ser utilizado como um dispositivo de diálogo e pactuação de compromissos e responsabilidades em relação a metas e indicadores que expressem as necessidades do contratante (gestor/população) e possibilidades do contratado (prestador).

A contratualização não é uma panaceia, uma solução para todos os problemas do sistema de saúde e dos serviços e também não é um fim em si mesma.