OPGH entrevista Arn Migowski, epidemiologista e Chefe da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede do Instituto Nacional do Câncer

Data da publicação: 20 de maio de 2022

Autores: Francisco Braga, Leila Salim e Simone Ferreira (OPGH/Fiocruz)

De que maneira — e com que gravidade — a pandemia de Covid-19 afetará a atenção ao câncer no Brasil e no mundo? Os impactos da emergência sanitária nas ações de rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento do câncer têm sido tema de preocupação entre especialistas, pesquisadores e gestores do sistema de saúde. Nesta entrevista, Arn Migowski, médico epidemiologista e Chefe da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede do Instituto Nacional do Câncer, fala ao OPGH/Fiocruz sobre os principais desafios colocados para o próximo período. Confira!

 

1. Dados do relatório Peso Global do Câncer, publicado no fim de 2021 e baseado nos dados da GBD 2019, mostram o aumento da incidência mundial e da mortalidade por  câncer na última década, antes do início da pandemia. A pesquisa demonstrou também que os impactos do crescimento do peso global do câncer na saúde entre 2010 e 2019 foram mais profundos nos países pobres, que ocupam posições mais baixas no índice sociodemográfico. No Brasil, a previsão é de 625 mil novos casos de câncer a cada ano do triênio 2020-2022, segundo a Estimativa 2020 - Incidência de Câncer (INCA). De acordo com a iniciativa Saúde Amanhã, da Fiocruz, até 2033 o país deve observar o aprofundamento da tendência de aumento do peso das doenças crônicas não transmissíveis. As estimativas apontam que as doenças do aparelho circulatório seguirão sendo a principal causa de morte, seguidas pelas doenças oncológicas, que tendem a continuar aumentando em função do envelhecimento da população. Como o sr. avalia essas estimativas e o que elas revelam sobre o peso do câncer na saúde no Brasil?

Os dados confirmam a importância das doenças cardiovasculares e câncer entre as causas de mortalidade, assim como seu peso no país. Há, aqui, algo importante para ser complementado. Publicamos, em abril deste ano, um artigo demonstrando que na verdade, durante a pandemia, houve no Brasil uma redução dos números gerais desses dois principais grupos — doenças cardiovasculares e câncer — como as causas básicas de mortalidade. Os dados se referem ao ano de 2020. Esses grupos seguiram ocupando proporcionalmente o primeiro e segundo lugares, respectivamente, entre as causas de morte, seguidos pela Covid-19 em terceiro lugar, mas os números caíram. Em contrapartida, esse mesmo estudo revelou que aumentou a participação desses grupos como comorbidades identificadas em óbitos. Identificamos um aumento não apenas percentual, mas em números absolutos, dos casos em que houve morte e o câncer ou as doenças cardiovasculares apareceram como comorbidade — e muitos desses óbitos tiveram a Covid-19 como causa básica, configurando uma provável antecipação e multiplicação dos óbitos entre pessoas que já tinham diagnósticos de câncer ou doenças cardiovasculares. Isso reforça, portanto, o peso desses grupos de doenças no cenário brasileiro. Houve, ainda, uma mudança de classificação que permitiu a inclusão do câncer como comorbidade em casos de Covid. Mesmo em 2020, primeiro ano da pandemia, isso já fica bem evidente e reafirma o peso da doença.  

 

2. O relatório Peso Global do Câncer revelou ainda que, nos países ricos, nesta década o câncer ultrapassou pela primeira vez as doenças cardiovasculares como a causa número 1 de agravos de saúde, o que não foi o caso do Brasil. Por outro lado, segundo a OMS, estamos entre o grupo de 112 países nos quais o câncer é a primeira ou segunda causa de morte de pessoas com menos de 70 anos. Consideradas as suas desigualdades regionais, como as tendências globais se expressam por aqui? E de que maneira as determinações sociais do processo de saúde-doença relacionado ao câncer se expressam no quadro atual?

Começo destacando a existência de contrastes regionais relevantes. Nas regiões Norte e Nordeste, principalmente Norte, há maior incidência e mortalidade de tipos de câncer que poderiam ser evitados, como, por exemplo, o câncer gástrico, que poderiam ser evitados com prevenção primária, por exemplo. Nesse caso, entram diversos outros fatores, como as condições de vida, de moradia, saneamento, o acesso à água tratada, o acesso à eletricidade (impactando na manutenção de geladeiras e conservação dos alimentos). Outro grande exemplo na região Norte é o câncer de colo do útero, que é um dos raros tipos de câncer cuja incidência pode ser diminuída através do rastreamento em exames citopatológicos de rotina (papanicolau). Ainda hoje, há dificuldades de implementação dessa rotina na região Norte, e se mantém esse quadro de maior incidência e mortalidade do câncer de colo do útero. Há, também, a questão da vacinação para HPV, que é mais recente, e que certamente produzirá impactos na redução de incidência e mortalidade desse tipo de câncer. Mas existe, de fato, esse quadro bem diferenciado regionalmente. Pensando os determinantes sociais, além desses que citei, há ainda os fatores de risco da transição epidemiológica, populacional e demográfica, que são diferentes em cada região do país. No Sul e Sudeste, identificamos um perfil mais próximo aos países de alta renda, apresentando fatores de risco como uma expectativa de vida mais alta, o que aumenta a taxa bruta de incidência de vários tipos de câncer ligados ao envelhecimento e explica parte da magnitude da carga de câncer nessas regiões — um problema, na realidade, ligado a um ganho geral que é o aumento da expectativa de vida. 

Para além disso, há fatores de risco associados a essas transições, como sedentarismo, obesidade, baixo consumo de legumes e verduras, aumento de consumo de alimentos processados (impactando mais especificamente o aumento de incidência de câncer colorretal). Há, ainda, outro fenômeno que acontece mais nas regiões de alta renda que é o excesso de diagnósticos: muitas vezes, o uso excessivo de rastreamentos, não apenas do SUS mas também da saúde suplementar, gera diagnósticos excessivos de cânceres que não teriam repercussão clínica. Isso acontece, principalmente, com os cânceres de próstata, mama e tireóide. Apresentei, recentemente, um estudo no Congresso Brasileiro de Epidemiologia falando sobre essa questão. Se formos levar em questão as discrepâncias regionais, poderíamos dizer que, de maneira geral, temos nas regiões Norte e Nordeste um quadro de incidência, principalmente, mas também mortalidade, mais próximo ao apresentado nos países de baixa renda, enquanto nas regiões Sul e Sudeste, esse perfil é mais próximo aos dos países de alta renda. Os mapas sobre incidência mostram claramente essas diferenças, confirmando que, além da diferença na expectativa de vida, há outros fatores de risco que são distribuídos de maneira desigual  no país — o que é confirmado pelo fato de que as diferenças são perceptíveis mesmo quando se ajusta a taxa de incidência por idade. 

 

3. Os dados do Inca mostram que, depois do câncer de pele não melanoma, os tipos de câncer mais incidentes no Brasil são os de mama e de próstata (66 mil novos casos em média ao ano cada). O câncer de pulmão aparece na terceira posição, desconsiderando o câncer de pele não melanoma, com 30 mil novos casos. No entanto, entre os homens é o câncer de traquéia, brônquios e pulmões que registra a mais alta taxa de mortalidade (13,8%). Já entre as mulheres, o topo do ranking de mortalidade é ocupado pelo câncer de mama (16,4%). Como os dados de incidência, mortalidade e letalidade nos ajudam a entender a evolução dos tipos de câncer no Brasil - e que tipo de desafio esse cenário coloca à estruturação da rede de atenção oncológica?

Em relação ao câncer de pulmão, esse é um tipo que, em geral, apresenta menor sobrevida se comparado aos cânceres de mama e próstata. A alta mortalidade está relacionada a essa maior letalidade e, também, à alta incidência, vinculada a fatores de risco como o tabagismo, principalmente. Isso ajuda a entender também porque, historicamente, a mortalidade é menor entre as mulheres, já que o tabagismo no Brasil é historicamente mais prevalente entre os homens.Tratando agora da importância e peso dos cânceres de mama e próstata, quanto à incidência e mortalidade, destaco que a letalidade desses tipos é menor do que a do câncer pulmonar. São tipos de câncer não apenas menos agressivos, em geral, como também frequentemente rastreados (diferentemente do câncer de pulmão, para o qual se discutem estratégias de elegibilidade para rastreamento em outros termos, considerando indivíduos de alto risco, por exemplo). 

Para o de próstata, embora não seja recomendado o rastreamento, há estudos demonstrando que ele ocorre frequentemente, inclusive o rastreamento com toque retal, que não tem sequer evidência de eficácia. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, que trouxe essa pergunta especificamente, mostrou como  o rastreamento era prevalente, mesmo com a questão do preconceito que é muito salientada pelas campanhas que promovem o rastreamento indevido do toque retal.  Então, o que temos é que o toque retal ainda é muito usado, mesmo sem comprovação para essa finalidade — destacando que o toque retal deve ser usado para outras finalidades, mas para rastreamento de câncer a evidência de benefícios é bem controversa, e há riscos envolvidos. Como orientação, não recomendamos que os homens sejam convocados para se fazer rastreamento de câncer de próstata como procedimento de rotina. Essa é uma das razões que explicam o porquê de, para próstata e também mama, haja o sobrediagnóstico, fazendo que muitos casos sem repercussão clínica sejam tratados. A pessoa trata, entende que ficou curada por causa do tratamento mas, na verdade, foi sobretratada, sobrediagnosticada etc, o que acaba gerando problemas para os usuários (que, paradoxalmente, ficam com o dano desse processo, mas o percebem como benefício) e para o sistema de saúde. 

Pensando nos desafios e questões colocadas para a rede de atenção oncológica, destaco que o modelo de rastreamento adotado acaba induzindo a esse excesso de rastreamentos fora de indicação. Uma mudança para um modelo organizado de base populacional diminuiria esse problema. Além disso, também diminuiria esse problema o uso de Decision Aids, que são ferramentas de suporte à decisão sobre o rastreamento. Recentemente, publicamos um artigo sobre o uso dessa ferramenta para o câncer de próstata. A situação que enfrentamos, hoje, é a de que, apesar de não ser indicado, há campanhas sistematicamente promovendo, os usuários procuram e, com isso, o sistema de saúde acaba pagando por esses procedimentos, tanto para rastreamento de mama e colo do útero fora da recomendação como para próstata. Então, o que podemos fazer? Como o profissional irá lidar com isso? Uma das apostas é a de que a ferramenta do Decision Aid ajudaria a compartilhar a decisão. Seria uma forma de privilegiar um momento da consulta para uma conversa inicial - que no SUS seria feita com o médico de família - com mais subsídios sendo ofertados a esse profissional. Do ponto de vista da gestão, pode haver um estímulo para que isso seja incorporado como prática de forma geral no sistema de saúde. Junto a isso, outra demanda é fortalecer a obtenção dos diagnósticos precoces para usuários com sinais e sintomas suspeitos, o que é um componente pouco falado e que depende muito da gestão da rede. 

.

Tabela: 10 maiores taxas de incidência e mortalidade - Mundo, América Latina e Caribe e Brasil, 2020. Esta tabela é parta da tabulação elaborada pelo OPGH com dados sobre o câncer no Brasil e no mundo. Clique aqui e veja os dados completos

4. O artigo Efeitos de curto prazo da pandemia de COVID-19 na realização de procedimentos de rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento do câncer no Brasil: estudo descritivo 2019-2020, de sua autoria em conjunto com as as pesquisadoras Caroline Ribeiro e Flávia Correa, destaca que, embora não existam sistemas de rastreamento de câncer de base populacional no Brasil, há estratégias bem estabelecidas e diretrizes nacionais definidas especificamente para o rastreamento dos cânceres do colo do útero e da mama. Como têm funcionado as estratégias e diretrizes específicas para rastreamento desses tipos de câncer? Como o sr. avalia a inexistência dos sistemas de rastreamento de base populacional, quanto às suas causas e impactos?

A grande questão é que o rastreamento de câncer no Brasil é o de tipo oportunístico, o que quer dizer que o paciente chega à consulta médica por outra causa (ou por demanda própria, incentivado por campanhas) e o médico ou médica pede o exame para rastreio, muitas vezes sem deixar claro qual é a finalidade daquele pedido. A decisão não é, como destacamos, compartilhada, o que seria importante sobretudo nos casos em que o rastreio ocorre fora das recomendações estabelecidas. A mudança de modelo seria para uma forma de rastreio organizado de base populacional, através do qual as pessoas sejam convocadas. No modelo atual, o que acontece, novamente, é o sobrerrastreio. Mesmo as pessoas que têm por hábito frequentar os serviços de saúde acabam sendo rastreadas inúmeras vezes sem que haja necessidade. Um exemplo é o câncer de colo do útero: depois de dois resultados anuais normais, a indicação passa a ser trienal. E, aqui no Brasil, o rastreio que deveria ser na maioria dos casos trienal é anual ou mesmo, em alguns casos, semestral. A mesma coisa acontece com o câncer de mama, e também para rastreio em mulheres abaixo das faixas etárias indicadas. Esse sobrerrastreio aumenta riscos e não tem comprovação quanto aos benefícios.  A consequência disso é um modelo ineficiente, com muitas repetições de testes nas mesmas pessoas sem necessidade, fora da faixa etária e das recomendações de periodicidade e, em contraste, outros que nunca são rastreados. E essas pessoas que não são rastreadas são aquelas que têm maior risco de ter câncer e de morrer por câncer. Essa é uma desigualdade que o modelo acaba ajudando a perpetuar. 

Já no modelo organizado de base populacional, o movimento é de “puxar” aquela pessoa que nunca fez rastreio — há uma busca ativa de quem não fez qualquer exame, ou de quem fez e não voltou ao serviço de saúde etc. Assim, se busca ativamente pelas pessoas que apresentam maior risco, quebrando o paradigma que perpetua uma iniquidade. O modelo atual, oportunístico, além de perpetuar a iniquidade, é muito menos eficiente: investe muito, tem poucos resultados e ainda gera danos. Havia, no Brasil, experiências locais de busca ativa, mas não temos isso organizado no sistema de saúde de forma geral. Como a busca ativa não é feita de maneira geral, o que acaba ocorrendo é o caminho contrário, baseado na ida das pessoas à consulta para que a demanda seja gerada, o que acaba gerando, como dito, um certo descontrole da faixa etária e da periodicidade dos rastreios, o que ocorre não apenas no SUS, mas também no setor privado. É uma lógica que está atrelada a essa ideia de consultas anuais a especialistas, o que acaba gerando distorções. Por exemplo, no caso da consulta ginecológica: quem vai anualmente, em sua maioria, são as mulheres em idade reprodutiva, mas o fator de risco do câncer de mama  aumenta de acordo com a idade e, por isso, o rastreamento é mais eficaz quando feito entre os 50 e os 69 anos e, principalmente, entre 60 e 69 anos. 

 

5. Qual a importância específica dos diferentes pontos e níveis da rede de atenção à saúde na atenção oncológica, considerando a promoção da saúde, o controle da exposição aos fatores de risco, o diagnóstico e o tratamento?

Em relação à promoção da saúde, é importante salientar a centralidade de ações intersetoriais, que vão para além do setor saúde. Há fatores de risco para câncer que envolvem saúde ocupacional e ambiental, alimentação, a necessidade de promoção de um estilo de vida saudável, o que está relacionado à organização das cidades e muitas outras questões que são macro e demandam essa atuação intersetorial. 

Na atenção primária, destaco como fundamental a vacinação contra o HPV, o rastreamento de câncer de mama e colo do útero, e ainda as ações para câncer de cólon e reto que também envolvem esse nível de atenção. Destaco, também, o primeiro atendimento aos pacientes sintomáticos: o serviço de saúde precisa estar organizado na atenção primária para permitir o atendimento sem marcação de demanda espontânea para indivíduos com sinais e para atender as pessoas com sinais e sintomas suspeitos, que precisam de uma avaliação médica inicial ali na atenção primária. Depois, é preciso regular para garantir que isso será encaminhado para confirmação e diagnóstico no nível secundário da rede de atenção. Também no nível secundário, deve ser realizado o tratamento, relativo ao câncer de colo do útero, das chamadas lesões precursoras. Esse é um tratamento que pode ser feito em nível ambulatorial, mas ainda temos dificuldades de garantir isso no Brasil. 

E, no nível terciário, está a parte oncológica propriamente dita, do tratamento que se foca principalmente em terapias sistêmicas — quimioterapia e radioterapia —  cirurgias. O importante é notar que trata-se de um sistema complexo e integrado, que precisa de uma regulação clínica integral. 

 

6. O artigo aponta ainda que, mesmo no período anterior à pandemia, o Brasil já apresentava dificuldades na organização do rastreamento, no acesso aos procedimentos diagnósticos e quanto ao longo tempo de espera para o início do tratamento do câncer. Que dificuldades eram essas e quais são os principais desafios da atenção oncológica no Brasil hoje? 

Para contribuir com esse tema, vou compartilhar uma iniciativa que tivemos pelo Inca. Nós desenvolvemos, junto ao DataSUS, o Painel Oncologia, que reúne vários sistemas de informação que o gestor pode cruzar para monitorar essa questão do tempo para início do tratamento. Publicamos um artigo sobre isso, sinalizando que o Painel Oncologia tem como objetivo ser uma ferramenta de gestão. A ideia principal é, justamente, ajudar o gestor a monitorar esse tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento no SUS. Mas essa ferramenta, em si, não basta. Há desafios quanto à regulação que passam pela priorização de casos e a necessidade de se antecipar aos problemas com longo tempo de espera. É preciso identificar em que ponto estão ocorrendo os atrasos, gerenciar filas e ser capaz de identificar quais são os casos nos quais o atraso terá maiores impactos. Isso reverbera na qualidade de toda a linha de cuidado. Além disso, é preciso priorizar o enfrentamento de algo que é anterior ao tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento, que é o tempo decorrido até o diagnóstico propriamente. Precisamos priorizar a estruturação e acesso ao diagnóstico, que é uma dificuldade que sempre existiu e é fundamental. 

 

7. Passando, agora, à discussão específica sobre o câncer no contexto da pandemia de Covid-19: a conclusão do artigo  Efeitos de curto prazo da pandemia (...) é a de que as ações de controle do câncer foram significativamente afetadas pela pandemia, sendo observada em 2020 uma redução de 44,6% de exames citopatológicos, 42,6% em mamografias, 35,3% biópsias, 15,7% cirurgias oncológicas e 0,7% procedimentos de radioterapia, em comparação a 2019. Como o sr. interpreta esses dados do ponto de vista dos desafios colocados para atenção oncológica daqui pra frente?

Houve uma diminuição nas ações e procedimentos de maneira geral em todo o mundo, e no Brasil não foi diferente. Isso foi identificado, especialmente, no rastreamento, o que era esperado. Publicamos um artigo apresentando recomendações para a detecção precoce de câncer durante a pandemia, no qual apresentamos orientações mais conservadoras de rastreamento e buscando priorizar pessoas que já estavam há mais tempo sem rastrear ou aquelas que já tinham apresentado exames alterados e casos sintomáticos, por exemplo. Mas, de maneira geral, a diminuição na realização de procedimentos foi um efeito colateral inevitável da pandemia. Além da ocupação de leitos de UTI para tratamento de casos de Covid, é importante notar, ainda, que existe uma relação com o fato de a pandemia ter atingido os próprios profissionais de saúde, que adoeceram e foram retirados das ações. É um efeito sistêmico que se expressa em todos os níveis. Além do impacto nos diagnósticos, a cirurgia, que é a principal modalidade curativa de tratamento do câncer, foi a mais afetada. O impacto é bastante considerável, e há alguns estudos buscando estimar por modelagem qual a sua extensão, considerando o atraso significativo no diagnóstico e no tratamento de câncer. O desafio imediato agora é investir, principalmente, em diagnósticos por busca ativa de pacientes com exames alterados que não retornaram para a realização da investigação e pessoas que tenham rastreado câncer de colo útero e de mama há mais de três anos. Hoje, são pensadas ações em mutirões para diagnóstico e tratamento, que são válidas nesse momento. Junto a isso, é necessário melhorar a regulação,  para que  pacientes de alto risco sejam identificados com mais eficiência e iniciem os tratamentos com mais agilidade.

O ponto chave, daqui pra frente, é (1) a adoção do rastreamento organizado de base populacional: convocar ativamente a população que compõe o público alvo dessas ações, com a periodicidade e faixa etária corretas, inclusive aqueles que não frequentam os serviços de saúde. (2) É preciso buscar ativamente os pacientes com exames alterados, fazendo o seguimento, que é essencial. (3) É preciso também investir na organização das ações, o que é, fundamentalmente, uma questão ligada à gestão. Apenas, por exemplo, o financiamento de procedimentos não resolve os nossos problemas. É preciso uma gestão integrada, levando em conta também a gestão local. Nós, como área técnica, buscamos atuar na gestão nacional, monitorando em nível macro as ações de detecção precoce, mas o nível local precisa ser muito fortalecido para organizar as ações descritas

 

8. Quais são as projeções para o contexto “pós-pandêmico”, considerando a carga global do câncer e os impactos do represamento das ações de promoção da saúde, diagnóstico e tratamento? 

A projeção é a de que o contexto pós pandêmico, como dito, seja atravessado pelas consequências da queda do rastreamento e diagnóstico. Junto a isso, há um outro lado: houve, durante a pandemia, uma diminuição do tempo de espera entre o diagnóstico e o início do tratamento, de acordo com o nosso monitoramento, quando o esperado seria uma piora nesse sentido. Uma hipótese que levanto para explicar isso é a de que houvesse uma sobrecarga do sistema, inclusive por conta dos casos excessivos em função do sobrerrastreamento, que diminuíram com a pandemia. No entanto, o problema de rastreamentos feitos fora da recomendação de faixa etária e periodicidade permaneceu, mesmo com a diminuição geral no número de ações. No nosso artigo, reforçamos que, mais do que nunca, na pandemia o rastreamento só poderia ser feito dentro das recomendações, porque além do risco de rastreio equivocado havia o risco de contaminação por Covid-19. Mas, mesmo com a diminuição geral nos números de rastreamento, o padrão de usuários que o fizeram estando fora das recomendações se manteve — o mesmo erro, especialmente de falta de adesão à faixa etária indicada, foi observado. 

O ponto chave, daqui pra frente, é a adoção do rastreamento organizado de base populacional: convocar ativamente a população que compõe o público alvo dessas ações, com a periodicidade e faixa etária corretas, inclusive aqueles que não frequentam os serviços de saúde. É preciso buscar ativamente os pacientes com exames alterados, fazendo o seguimento, que é essencial. É preciso investir na organização das ações, o que é, fundamentalmente, uma questão ligada à gestão. Apenas, por exemplo, o financiamento de procedimentos não resolve os nossos problemas. É preciso uma gestão integrada, levando em conta também a gestão local. Nós, como área técnica, buscamos atuar na gestão nacional, monitorando em nível macro as ações de detecção precoce, mas o nível local precisa ser muito fortalecido para organizar as ações descritas. 

 

9. Recentemente, dia 8 de abril, foi o dia mundial de combate ao câncer. O Brasil tem algo a comemorar? O quanto avançamos no âmbito da política direcionada à atenção oncológica? 

Enquanto há desafios históricos a serem superados e novos que surgem, avançamos em muitos pontos. Nas últimas décadas, tivemos uma redução importante da mortalidade por câncer gástrico e uma redução da mortalidade por câncer do colo do útero, especialmente nas capitais. A mortalidade desse último ainda persiste como um desafio, especialmente por conta das desigualdades comentadas anteriormente. Além disso, a redução da mortalidade por câncer de mama também foi observada, juntamente com o diagnóstico precoce a partir de casos com sinais suspeitos. Essa é uma iniciativa que precisa ser incentivada, superando um discurso antigo, mas ainda muito reproduzido, que afirma que uma vez manifestados os sintomas, já seria “tarde demais” para iniciar tratamentos. Na verdade, a medicina tem condições de intervir de forma mais favorável em casos nos quais há sinais suspeitos. Por isso, reafirmo que a estratégia do diagnóstico precoce a partir do rastreamento de casos dentro da recomendação precisa ser fortalecida. 

De forma geral, o Ministério da Saúde nas últimas décadas avançou também na cultura de avaliação da incorporação das novas tecnologias, racionalizando essa questão. Há, sempre, o problema do “cobertor curto”, levando em consideração o tamanho do problema, os recursos finitos, todas as dificuldades orçamentárias, colocando desafios para o sistema de saúde lidar com isso. Com o fortalecimento técnico dessas avaliações, há uma maior racionalidade na utilização desses recursos limitados. Isso precisa ser incentivado, para que o sistema de saúde seja mais eficiente com os recursos disponíveis. 

 

NOTAS

1. GBD 2019: Pesquisa Peso Global das Doenças, publicada em 2020 no periódico The Lancet

2.  O SDI (índice sociodemográfico) reúne dados sobre escolaridade, renda per capita e quantidade de filhos até os 25 anos de cada país, produzindo um indicador que varia de 0 a 1. 

3.  Em demografia e geografia médica, a transição epidemiológica é uma teoria que "descreve a mudança nos padrões populacionais em termos de fertilidade, expectativa de vida, mortalidade e principais causas de morte.

4. Os dados da pesquisa internacional indicam que a última década registrou uma mudança significativa quanto aos impactos causados pelos diferentes tipos de câncer, considerando a quantidade de casos e mortalidade. O câncer colorretal subiu da terceira para segunda posição como principal causa de anos de vida perdidos por doença; e o de fígado de sétima para quinta posição. O câncer de pulmão permaneceu, como nos estudos anteriores, como o tipo de câncer mais comum, excetuando o câncer de pele de tipo não melanoma.Já no Brasil, dados do Inca indicam que depois do câncer de pele não melanoma (177 mil casos novos), os mais incidentes serão os de mama e de próstata (66 mil cada), cólon e reto (41 mil), pulmão (30 mil) e estômago (21 mil). Separados por sexo, os tipos mais frequentes nos homens, excluindo-se pele não melanoma, serão próstata (29,2%), cólon e reto (9,1%), pulmão (7,9%), estômago (5,9%) e cavidade oral (5,0%). Nas mulheres, também sem contar o não melanoma, os mais incidentes serão os de mama (29,7%), cólon e reto (9,2%), colo do útero (7,4%), pulmão (5,6%) e tireoide (5,4%). Quanto à mortalidade, separados por sexo, os tipos de câncer que registram mais óbitos entre os homens são o de traquéia, brônquios e pulmões (13,8%), seguido por próstata (13,1%), cólon e reto (8,4%) e estômago (7,9%). Entre as mulheres, aparecem mama (16,4%), traquéia, brônquios e pulmões (11,4%), cólon e reto (9,4%) e colo do útero (6%).