Com os problemas na consolidação e publicização dos dados sobre a COVID-19 pelo Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e alguns dos principais jornais do país resolveram desenvolver suas próprias iniciativas de contagem e divulgação. O CONASS lançou o Painel CONASS COVID-19, com atualizações diárias até às 18h, e os veículos de comunicação G1, O Globo, Extra, Folha de São Paulo, UOL e Estadão formaram um consórcio para apurar os dados sobre contaminados e óbitos junto às secretarias de saúde e divulgar o balanço em conjunto, todos os dias, à partir das 20h. Além da imprensa, pesquisadores têm atuado como fiscais dos dados brasileiros da pandemia, tanto no Brasil, quanto no exterior.

Logo que o painel Coronavírus Brasil saiu do ar, a John Hopkins University – responsável pelo COVID-19 Dashboard, que monitora a pandemia no mundo  – anunciou que tinha suspendido temporariamente a divulgação dos dados relativos ao Brasil até a normalização do painel do Ministério da Saúde. No ínterim, ficaram acessíveis apenas os dados oficiais até o dia 4 de abril. O fato foi identificado pela equipe do UOL, que percebeu o sumiço do Brasil do levantamento. No dia 15 de junho, foi a vez do Imperial College recomendar cautela com os dados brasileiros, uma vez que a divulgação de casos e de óbitos estava sofrendo mudanças constantes. A John Hopkins University, dos Estados Unidos, e o Imperial College, do Reino Unido, são as mais importantes referências globais no monitoramento da COVID-19.

Os pesquisadores, tanto internacionais quanto nacionais, formam junto com a mídia o time dos guardiões dos dados da pandemia. Qualquer mudança ou discrepância na divulgação é notada primeiro por eles – já que, principalmente para os pesquisadores, dados são a matéria-prima do seu trabalho. Além de vigiarem a qualidade dos dados da pandemia de COVID-19 e de produzirem conhecimento sobre a doença no país, os pesquisadores se debruçam sobre a importância da confiabilidade e transparência dos dados para a produção de políticas públicas eficazes, e isso tanto no nível federal, quanto no estadual e no municipal. Em artigo, pesquisadores do Cepesp da FGV afirmam que a qualidade dos dados que o Brasil está recolhendo, organizando e usando para definir as políticas públicas de combate à pandemia do Covid-19 está muito aquém do que já foi feito nos países que foram eficientes no combate à pandemia, mas relatam também que houve avanços no índice de transparência nos dados estaduais e municipais.

Transparência

Em boletim do dia 4 de junho, a Open Knowledge Brasil (OKBR) registrou que o índice médio de transparência dos dados da COVID-19 havia triplicado em relação à primeira avaliação, de 3 de abril. No ranking, os estados melhor colocados são Ceará, Goiás, Minas Gerais e Rondônia. Na lanterna, estão Bahia, Roraima, Amazonas e Matogrosso. O índice leva em conta 13 critérios, divididos em três categorias: conteúdo (que considera itens como idade, sexo e hospitalização dos pacientes confirmados, e dados sobre a infraestrutura de saúde tais como ocupação de leitos, testes disponíveis e aplicados), granularidade (que avalia se os casos estão disponíveis de forma individual e anonimizada, além do grau de detalhamento sobre a localização), e formato (que considera pontos positivos a publicação de painéis analíticos, planilhas em formato editável e séries históricas dos casos registrados).

Apesar das boas notícias, o boletim traz ressalvas. “Em tempos normais, poderíamos comemorar a abertura de dados de forma tão expressiva em apenas 2 meses. Mas, com a pandemia, o fato de ainda haver quase um terço dos estados que ainda não publica microdados, ou quase metade que ainda não publica a ocupação de leitos, é motivo de grande preocupação”, afirma Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da OKBR. O apagão de dados de leitos de UTI também foi tema de investigação da Rede de Pesquisa Solidária, que identificou lacunas e inconsistências nas informações colhidas sobre o número de leitos de UTI para covid-19 disponíveis e ocupados, em levantamento feito com dados de UTI registrados nas plataformas públicas do Ministério da Saúde e de 26 secretarias estaduais de saúde, além do Distrito Federal. De acordo com o estudo, não há informação clara sobre o número de leitos de UTI destinado a pacientes de  COVID-19 disponíveis no país. São relatadas, ainda, diferenças entre dados apresentados nas plataformas oficiais que chegam a 200% – como, por exemplo, na comparação entre os registros da Plataforma COVID-19 e os do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), ambos referentes a maio de 2020.

A enfermeira e doutora em Saúde Pública Juliana Machado, colaboradora do Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH) da Fiocruz e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), explica como funciona a habilitação de um leito no CNES – o que também ajuda a entender porque este tipo de discrepância ocorre. “O responsável pelo estabelecimento hospitalar preenche as informações do leito no CNES e o gestor (que pode ser do município ou do estado) valida”. O que costuma acontecer, segundo ela, é o leito existir e ser operado mesmo não estando habilitado formalmente, já que o seu funcionamento é uma prioridade na emergência sanitária. “Este leito, no entanto, não é um leito-fantasma, pois é cadastrado na tabela do CNES para os leitos existentes. Ambas as tabelas – de leitos existentes e de leitos habilitados – fazem parte do CNES”. Quando o leito cadastrado ainda não está habilitado, as internações ocorridas e registradas em AIH (Autorização de Internação Hospitalar) não são aprovadas. Para quem trabalha com os dados de leitos habilitados, portanto, uma das soluções é também checar a tabela das internações que foram rejeitadas. Ainda de acordo com Juliana, outro fator relevante é o ritmo de funcionamento das secretarias de Saúde dos municípios e dos estados. “Umas são mais lentas que outras por uma série de razões, inclusive por sobrecarga das equipes, e isso afeta o timing de habilitação e do lançamento dos dados”, alerta. “No entanto, o ideal é que todo procedimento seja feito o mais rápido possível e que os estabelecimentos e secretarias se organizem para priorizar a agilidade dos dados na pandemia”. Por isso, Juliana destaca que a implicação mais grave da lentidão no processo de cadastro e habilitação dos leitos no CNES é a transparência dos dados, pois mesmo não habilitados, eles funcionam.

O estudo da OKBR destaca também que apenas cinco estados apresentam o número de leitos de UTI para COVID-19 do SUS e também do sistema privado (Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo e Sergipe), e sete apresentam a taxa de ocupação em tempo real dos leitos de UTI COVID-19 do SUS em todas as unidades gerenciadas pelas secretarias estaduais ( além de Alagoas, Ceará, Espírito Santo e Distrito Federal,  os estados de Goiás e Santa Catarina). Rio de Janeiro e Tocantins não apresentam nenhuma informação sobre o número de leitos de UTI COVID-19 em suas plataformas, sendo que o Rio de Janeiro possui a maior taxa de letalidade do Brasil. A ausência de informações sobre leitos de UTI para COVID-19 também se verifica no Amazonas e em São Paulo, estados considerados epicentros da pandemia: enquanto o Amazonas traz somente o número de leitos ocupados, sem a taxa de ocupação, São Paulo apresenta a taxa de ocupação, mas não distingue o tipo de leito (SUS ou rede privada). O documento alerta, ainda, que é preciso observar o descompasso entre esses dados, as estimativas de capacidade de atendimento aos doentes e os planos de flexibilização dos municípios e estados.

Dados dizem muito, mas não dizem tudo

A pandemia lançou o holofote sobre os dados de saúde no Brasil: a situação grave e inesperada mostrou não apenas a relevância dos sistemas nacionais de informação em saúde do país, bem como suas fragilidades. Além das habituais qualidades que principalmente bancos de dados em saúde devem possuir (como consistência, validade, confiabilidade e representatividade), outras características, como atualidade, constituem desafios adicionais. É que o que relata a médica Ceres Albuquerque, colaboradora do OPGH e da secretaria estadual de saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ). Ela acredita, que, em teoria, seria interessante que os dados de óbitos fossem considerados no dia em que ocorreram. No entanto, não é isso que a prática demonstra. “Embora para a análise da dinâmica da pandemia fosse melhor que os óbitos fossem considerados no dia do evento, essa notificação é demorada. Então, isso seria mais um elemento de subnotificação”, avalia. Ela também ressalta que é preciso cuidado, por exemplo, ao se interpretar os dados por semana epidemiológica – mas não porque eles não sejam corretos. “Os dados são confiáveis e são atualizados dia após dia, e não apenas para o dia de referência, mas os anteriores inclusive”, explica. Isso acontece porque os eventos precisam ser notificados pelos diversos municípios, registrados, para então virarem dados a serem compilados pelas secretarias de saúde. “Há municípios com mais, outros com menos estrutura e recursos humanos. Alguns conseguem fazer esse registro com mais rapidez, outros nem tanto. Sabemos, então, que o ideal é que as três semanas epidemiológicas para trás sejam analisadas como indicadoras de tendência, já que elas costumam levar esse tempo para ser totalmente consolidadas”, esclarece.

Josué Laguardia, médico e pesquisador do Icict/Fiocruz, concorda que as necessidades de vigilância da pandemia evidenciam a organização dos serviços nas diversas secretarias de saúde, o que reflete, ainda, a distribuição desigual de recursos financeiros e humanos entre as mesmas. No entanto, ele lembra que, antes da pandemia, algumas bases de dados chegavam a demorar dois anos para ser consolidadas. “Esse delay é impraticável para que se produza respostas efetivas de saúde pública”, diz. Outro ponto a ser considerado estruturalmente é a perda de pessoas capacitadas para produzir as informações em saúde. “Antes dos laboratórios centrais (LACEN), havia os laboratórios municipais. Houve um desmonte desses laboratórios. As análises laboratoriais precisam novamente ser valorizadas”, pontua, ressaltando que, principalmente no caso da COVID-19, não basta ter somente testes e pessoas para aplicá-los – é preciso que haja efetivo que possa analisá-los laboratorialmente. E se produzir os dados e registrá-los é tão importante, saber interpretá-los também é. Laguardia destaca que há um certo gap de profissionais habilitados para interpretar as informações epidemiológicas, embora as tecnologias estejam muito mais diversas, desenvolvidas e democratizadas do que há 20, 30 anos atrás. “Em termos de matemática, computação, big data, não podemos reclamar. Mas as epidemias e surtos não são compostos apenas por variáveis biológicas e numéricas; temos que considerar os fatores sociais, psicológicos, ambientais”, enumera. Ele defende uma formação mais multidisciplinar desses profissionais, e acrescenta que o trabalho feito nas epidemias de tuberculose, zika e sarampo pode fornecer bons insights para uma abordagem mais holística da pandemia de COVID-19.

No mais, a cautela com dados – não apenas da pandemia, mas em saúde e de forma geral – não deve ficar por conta apenas de desconfiar deles a priori; é preciso saber como eles devem ser encarados. Dados não são a realidade, e sim uma representação, que obviamente deve ser a mais fidedigna possível. “Em sua essência, dados podem ser questionados indefinidamente. Mas devemos ter cuidado para não transformar isso em algo que, ao invés de aprimorar, invalide todo conhecimento produzido e divulgado até então”, alerta Laguardia. Em tempos de fake news e negação de evidências científicas, isso é especialmente perigoso. E, no outro extremo, há quem veja nos dados uma espécie de tábua da salvação. “Essa corrida aos dados é compreensível: é como se todos quisessem olhar para eles e dizer ‘Conte-me o que não sei’. São muitas as incógnitas sobre o vírus, sobre a doença, sobre sua evolução. Mas os dados não são oráculos e mesmo quase perfeitos, não dizem tudo”, pondera. O ideal, aconselha, é que sejam tomados com a devida ciência de suas limitações, e mesmo assim, no geral, não exercem influência na crença das pessoas. “A crítica dos dados não influencia no que as pessoas acreditam ou não. Além disso, as possíveis limitações que eles possuem não contestam a gravidade da situação que vivemos”, conclui. “Escondível” ou não, a realidade é inegável. Por isso, se os bancos de dados podem, e devem, ser questionados por especialistas, o mesmo não se aplica às medidas de controle e prevenção da disseminação da pandemia.